domingo, 2 de dezembro de 2012

Ficção científica: Batismo de Fogo

Inacreditável!

Em algum momento da década de 90 eu escrevi o conto abaixo. Ele foi classificado em um dos prêmios literários promovidos pelo fanzine "Boletim Antares", organizado, editado e distribuído, na época, por Jane Terezinha Mondelo de Souza, mas não lembro (nem encontrei) o conto publicado em nenhum lugar. Em homenagem àqueles tempos, o texto abaixo segue com apenas algumas pequenas alterações, a maioria de ordem ortográfica. Vocês poderão "desfrutar" de um texto do início da minha carreira literária. Espero que gostem.

Por certo: o conto vai em homenagem à uma recente descoberta da NASA, cuja divulgação encontrei hoje, no Twitter do Antônio Luiz M. Costa. Encontraram gelo em Mercúrio, o planeta mais próximo do Sol

Gelo, e material orgânico.

Boa leitura!


MENSAGEM DE BORDO DO IATE SOLAR HÉLIOS 27, EM ÓRBITA DE MERCÚRIO, CAPTADO PELA ESTAÇÃO ESPACIAL WERNER VON BRAUM EM ÓRBITA CE VÊNUS, À 23 DE NOVEMBRO DO CORRENTE ANO. EMISSÃO: 13H 27MIN. HORA DE GREENWICH. RECEPÇÃO 13H 27MIN. HORA DE GREENWICH, CRONÔMETRO MARCANDO 17 SEG. DE DIFERENÇA. DURAÇÃO DA MENSAGEM: 2 MIN.27SEG.

SEGUE TEXTO:

“—Aqui é a sala de comando, responda controle de dados.

—Aqui é o controle de dados.

—Checagem de posição.

—Estamos a uma distância aproximada de 300.000km da superfície de Mercúrio. Órbita padrão sobre o tópico norte, há 400km do meridiano do planeta.

—Ok, Dieter, parece que você fez o dever de casa direitinho. Agora me faça um favor: monitore visualmente a região 45, a 195º do hemisfério austral do nosso planisfério.

—Um momento... Pronto. Já o tenho. Qual é o problema... espere! Um momento! Tenho uma leitura... não pode ser! Acho que temos um problema com nossos sensores óticos.

—Está vendo algo?

—Penso que sim, mas ali fora não deveria haver nada... Vocês também estão vendo?

—Descreva.

—Uma forma amarelada, semi-transparente.

—Afirmativo, nós também a detectamos. Temos um contato positivo.

—O que é aquilo?

—Não tenho a menor idéia. Talvez seja um tipo de manifestação solar ainda não identificada. Aplique a lista de classificação 376 e me informe dos resultados.”

SEGUEM 30 SEG. DE SILÊNCIO

“—Comando, já temos os primeiros resultados da checagem padrão 376. Não creio que seja um novo tipo de manifestação solar, senhor.

—Informe.

—Tem massa, mas seu volume é pouco maior que zero. Não possui radioatividade, seu albedo é extremamente baixo, a gravidade é igual a 0.01. Se movimenta. Vem direto para cá.

—Controle de dados, qual é a velocidade da manifestação?

—É de... droga, que hora para ficar escuro. Joca, você vai ligar o gerador de emergência ou terei de chamar Benjamim Franklin para fazer isso?”

FINAL DA MENSAGEM.

O IATE SOLAR HÉLIOS 27 DESAPARECEU DOS SENSORES DA ESTAÇÃO ESPACIAL WERNER VON BRAUM ÀS 13H 36 MIN, HORA DE GREENWICH.

DESTINO IGNORADO.

A ESTAÇÃO NÃO ENCONTROU NENHUMA ATIVIDADE NA REGIÃO 45 DE MERCÚRIO.

QUALQUER INFORMAÇÃO, É FAVOR TRANSMITIR EM PRIORIDADE DELTA À CENTRAL DE VÔOS ESPACIAIS (CEVE) DA TERRA.

AS FAMÍLIAS DAS VÍTIMAS AGRADECEM.

CONTRIBUA COM O FUNDO DE APOSENTADORIA DO ASTRONAUTA. ELE FAZ PARTE DO SEU FUTURO.

FIM DA MENSAGEM.

***

—Começo a pensar se você tem programado corretamente essa droga, —reclamou Daien. Vilca virou-se para ele com os olhos sombrios.

—Deuses o protejam, Daien, Não estou disposto a discutir com você, mas se insinuar mais uma vez que não sei programar um computador de bordo, arranco a sua cabeça.

Os dois estavam sentados na minúscula cabine de recreio da nave VIRGÍNIA 5. Daien estava consultando o mapa espacial da área onde se encontravam pela oitava vez e Vilca bebia um preparado de vitaminas e sais minerais, relendo pela quarta vez a mesma história em quadrinhos. Ambos sabiam que a viagem espacial não lhes ofereceria mais nenhuma novidade, e que não lhes sobraria mais nada para fazer senão discutir um com o outro, até retornar à Terra. O problema é que mal haviam chegado àquele planetinha ridículo, e ainda teriam de enfrentar três meses de viagem de volta. Nada melhor do que uma viagem espacial para terminar com a amizade entre dois homens, pensou Daien aborrecido.

A verdade é que ambos estavam nervosos. Aquele era seu primeiro serviço no Sistema Espacial de Entregas Rápidas (“entregamos qualquer coisa em qualquer lugar”, dizia o slogan), seu primeiro emprego depois de dois meses de estágio em uma estação espacial e quatro de inércia na Terra, à espera de um chamado. Eles haviam saído a seis meses da Academia e já começavam a sentir-se como estatísticas de Sociologia e Economia, quando o fim do ano chegou na Terra e todo mundo começou a mandar ou encomendar presentes das colônias. De repente, todas as empresas de entregas que trabalhavam com rotas interplanetárias estavam procurando pilotos, mesmo aqueles que não tinham experiência alguma, para suprir os pedidos que chegavam como uma enxurrada às agências.

E agora, lá estavam eles, Daien e Vilca, verdes como maçãs verdes em pleno outono, tentando parecer maduros e experientes para manter o emprego, discutindo idiotices no VIRGÍNIA 5, sobre o pequeno Mercúrio. Atrás deles a porta rangeu e abriu-se. Os dois enrijeceram as costas sem o notar.

O capitão apareceu.

Como toda vez em que o gordo e vermelho capitão da VIRGÍNIA 5 entrava em uma das cabines da nave, o ar se encheu do fedor de vodka barata que o acompanhava. Ele olhou para os dois astronautas com um olhar malicioso, grunhiu e sentou-se na cadeira que sobrava. Tirou do bolso uma garrafa e bebeu um trago. Vilca suspeitava que cada libra da bagagem do homem era aguardente de terceira qualidade. Torceu o nariz e voltou ao preparado e à revista. Que Daien se virasse com ele.

—O que está acontecendo? —balbuciou o capitão, tentando parecer irônico. Mas só conseguiu parecer mais patético ainda. —Por que não pousamos?

—O computador está procurando o farol. Sem o farol não podemos descer.

—E onde diabos está o farol?

Daien deu de ombros.

—A máquina o está buscando automaticamente. Quando o encontrar nos avisará. Se tivéssemos um portulano poderíamos descer sem o farol.

—Eu não faço portulanos, —interrompeu o homem da vodka. Um brilho esquisito luziu em seu olhos por um instante e Daien teve certeza de que ele possuía um, em algum lugar entre as garrafas, um portulano com todos os dados que necessitavam para pousar sem ter de depender do farol espacial de Mercúrio para guia-los. Pensou que se aquele tonel de álcool confiasse pelo menos um pouquinho nos dois, pousariam em menos de trinta horas. Mas o capitão estava bêbado demais para pensar.

—Não me olhe assim! —berrou ele batendo com a garrafa na mesa. A bebida respingou para todos os lados, e os dois rapazes pularam sobressaltados.

—Ouçam, pela última vez, eu não faço portulano, não tenho portulanos —sibilou ele. —Ficaremos em órbita aqui em Mercúrio até às 16h e 56 min e depois iremos para casa, entendidos?

Daien e Vilca se entreolharam surpresos.

—Que idéia é essa? Não poderemos pegar os cristais de sais que nos foram encomendados! —protestou o programador, assustado com a possibilidade de não dar conta do serviço.

—Danem-se os cristais. Vamos ter muita sorte se conseguir sair vivos daqui —resmungou o homem. Bebeu o resto do líquido, depois levantou-se e desapareceu pelo interior da nave.

—Eu não disse que era uma fria? —explodiu Vilca irritado. —Esse bêbado idiota se aposenta na semana que vem. Está se lixando para nós e os cristais de sais!

Daien o fitou longamente.

—Fica frio, Vilca. Não vamos sair daqui para a fila dos desempregados. Eu garanto isso.

***

—Acha que ele acredita na lenda? —perguntou Daien, olhando para as imensas “janelas”. Eram telas em que se reproduziam as imagens do exterior, captado pelas câmaras do casco e ajudavam a amenizar o sentimento de claustrofobia.

—Com tanta bebida, acreditará até mesmo em marcianos verdes —replicou Vilca.

Ambos estavam na pequena cabine de comando da nave, esperando o apito do piloto automático indicando que havia encontrado o sinal do farol. O aposento estava cheio de computadores, mostradores e luzinhas que piscavam. Daien ignorava tudo e deixava-se levar pela ilusão das “janelas”. Mercúrio e o Sol não eram visíveis dali, pois estavam sob a nave. Ou melhor, corrigiu-se, a nave é que estava sobre o planeta, em órbita padrão sobre o trópico norte. Já haviam dado duas voltas em Mercúrio, e nada do sinal do farol. Ele suspeitava que Vilca havia configurado mal o receptor, mas não se atreveu a abrir a boca.

—Eu gostaria de saber, —disse ele, finalmente. —Gostaria de saber se existe ou não.

—Oh, deuses, Daien! —gemeu o outro. Ele jogava xadrez com o computador, mas já ia perdendo de três a zero. Daien teria preferido “Labirinto Cósmico”. Não tinha paciência para jogar xadrez —nem para ver os outros jogar. —Não vá me dizer que acredita nessa idiotice de “arraia cósmica”. Não há vida no vácuo, lembra do professor de exobiologia, como era mesmo o nome dele?

Vilca endireitou-se, levantou o indicador e fez uma voz estridente:

—Senhores, senhores, o Espaço é o lugar mais sem imaginação que existe.

Relaxou diante do sorriso do companheiro.

—Se chamava senhor Sahlan, era rabino e quem não tinha a menor imaginação era ele.

Os dois riram por um momento.

—Se houvesse vida no vácuo, de que se alimentaria? —tornou Vilca, voltando ao jogo. O computador comeu-lhe um bispo e ameaçou a dama.

—Sei lá. Hidrogênio. Vento solar, asteróides, luz.

—Maldita máquina, me comeu o bispo com o qual pensava dar-lhe um cheque!

—Talvez obedeça uma ordem orgânica diferente da que conhecemos, hum? Que me diz?

—Hum, talvez deva fazer um roque...

—Você nem sequer está me ouvindo!

—Não vale a pena prestar atenção nas bobagens que você diz.

Vilca voltou-se para Daien. Fitou-o por um instante, depois disse:

—Em primeiro lugar, se a sua “arraia” se alimentasse de hidrogênio, consumiria mais energia comendo do que a ingerida, e morreria de fome. Depois, se ela “comesse” luz solar ou vento cósmico, seria feita de luz e radiação e provavelmente seria inofensiva. Se “comesse” asteróides, também morreria de fraqueza. Além disso, já imaginou a força de gravidade que ela necessitaria para gerar e manter seu corpo unido? E o volume que teria, para não explodir?

—Se sua pressão interior fosse muito reduzida, não precisaria de um campo gravitacional muito forte.

Vilca abanou a cabeça e voltou-se para o computador que conseguira infiltrar um cavalo em suas fileiras.

—Vou fazer o meu relatório diário, —sussurrou Daien.

—Ótimo. Faça isso.

O programador passou duas horas jogando antes de enjoar do desafio. Perdeu outro jogo, empatou o seguinte, pensou nos bons tempos da Academia, quando todo mundo tinha idéias realistas e só bebiam nos fins-de-semana, lembrou-se de uma garota chamada Laura, de quadris largos e cintura estreita, de um milhão de coisas mais, antes de um dos instrumentos de observação acender subitamente, piscando entre os demais.

Alguns minutos depois, Vilca contraiu as sobrancelhas, encarando a luz com preocupação. O aparelho luzia um diminuto marcador digital que saltava de um número para outro, regularmente, indicando que no hemisfério austral do céu visível da nave, há uns 200.000 km do VIRGÍNIA 5, uma série de diminutas estrelas estavam se acendendo.

—E essa? —resmungou ele, mexendo em alguns controles. A maioria daquele equipamento estava defasado e muitas vezes apresentava defeito. Mas desta vez a luz continuou lá.

O rapaz moveu as câmaras externas. As estrelas fugiram como se fossem cometas escrevendo padrões no céu. Seus rastros luminosos clarearam por um momento o rosto intrigado de Vilca e depois se foram.

Um pedaço de Mercúrio surgiu na parte inferior da “janela”. O sol resplandeceu à direita, aparentemente redondo, com as bordas franjadas, lembrando os desenhos que todas as crianças, fossem da Terra ou das Colônias, faziam. Se sua luz não fosse filtrada pelos instrumentos, Vilca ficara instantaneamente cego, mas mesmo assim sua luz era suficiente para colorir tudo com um brilho amarelo e apagar várias estrelas. Com um ajuste no computador, o rapaz criou um eclipse virtual e a estrela quase desapareceu. Só restou uma cinta fina e brilhante.

Agora o céu parecia povoado outra vez. Lá estavam as estrelas recentes, cinqüenta mil delas, pequenas candeias reunidas em um espaço ridículo para uma estrela. Ocupavam uma área de cinqüenta mil quilômetros quadrados, segundo um dos registros, e dali a pouco eram setenta mil pirilampos cósmicos na área. Antes que a contagem chegasse a cem mil, Vilca bateu com o punho no botão do alarme manual.

—Qual é o problema, rapaz? —indagou a voz embargada do capitão, mais distorcida ainda pelo som infame do rádio velho.

—É... é.... eu não consigo identificar. Não saberia dizer se é de fato um problema. O senhor poderia vir até aqui?

—Ir à sala de controles? —gorgolejou o homem com uma risada. —Era só que me faltava. Para que vocês estão sendo pagos?

—É que... é uma nova constelação —“que coisa idiota para se dizer”, ralhou Vilca consigo mesmo. Houve um instante de silêncio.

—Ir até aí olhar pela “janela”? Não mesmo! Nem morto você me farão olhar para as estrelas de novo. Nem duro de bêbado, nem morto. Coisas do demônio é o que elas são, fornalhas do inferno!

A porta da cabine de comando se abriu repentinamente e Daien entrou esbaforido. Vilca deixou o capitão praguejando sozinho e voltou-se para o amigo, pálido. Apontou para a “janela”. Daien arregalou os olhos para as cem mil luzes, brilhando como uma árvore de Natal. Tremia da cabeça aos pés.

—Bem, —comentou Vilca recuperando parte do sangue frio. —Devo reconhecer que tem uma coisa muito esquisita lá fora.

A formação de luzes havia parado de crescer. Sua era forma irregular, lembrava uma ameba. As luzes piscavam como pirilampos em noites de verão. Lentamente eles moveram-se para um círculo perfeito e por um momento foram a imagem e semelhança do Sol. Foram algo mais. Foram, cada uma delas, um sol. Depois, a medida em que iam se tornando uma coisa única e homogêna, pareceram diminuir a luz, até que se tornaram apenas uma sombra amarelada, uma cor contra o espaço. Através dela brilhavam palidamente as estrelas.

“Aquela ali é Rigel, a que está brilhando através dessa coisa, é Rigel, da constelação de Órion, e Betelguesse e Belatrix,” pensou Vilca perdendo terreno para o pânico que o invadia. “É Riguel e Betelguesse, pelos deuses, e eu vou gritar daqui a pouco.”

—Análise espectral —disse alguém muito distante dele. Vilca piscou e olhou o amigo sentado na cadeira ao seu lado. Daien encarou-o com os olhos muito abertos.

—Análise espectral, vamos! — ele repetiu enérgico.

Os dedos de Vilca voaram sobre os instrumentos e estremeceram quando Daien começou a rir ao seu lado, um riso histérico e agudo que feria o ar em agulhadas desconfortáveis.

—Adivinhe o volume daquela coisa —ele perguntou e então riu de novo. —É próximo a zero, ouviu?

—Pelos deuses, —sussurrou Vilca entredentes, mas pareceu-lhe que até a Terra ouviria suas palavras. —Pode ser, mas não está vivo. Não pode estar vivo. É impossível!

Em resposta, vários relâmpagos azuis correram de ponta a ponta o círculo irregular e em algum lugar do VIRGÍNIA 5 eles ouviram uma porta se abrir. O radar piscou simultaneamente ao resultado que saía do espectrômetro, que as mãos trêmulas de Vilca agarraram.

—É feito de...

—Um momento,—interrompeu Daien. —aí vem um asteróide.

—O relatório diz que é um pedaço de gelo tipo IV, com traços de ferro em sua composição —respondeu Vilca automaticamente, satisfeito por poder pular a análise da sombra colorida.

—Olhe só aquilo!

Raios azulados correram outra vez pela “cor” e pareceram concentrar-se em um ponto.

—O asteróide passará à 3.000 km da coisa —advertiu o programador.

—Duvido, —sussurou Daien. —Duvido muito.

—O que está querendo... —Vilca interrompeu-se quando uma espécie de tentáculo estendeu-se através do espaço saindo da coisa e envolvendo o asteróide com repentina velocidade. O pedaço de gelo se desintegrou numa explosão silenciosa. Em seguida o tentáculo recuou e a coisa pareceu aguardar.

—Deuses.... —gemeu Vilca.

—Bem, se aquilo não é um ser vivo, acabamos de observar o primeiro ser inanimado que se movimenta em direção da comida, e a come, nos anais da exozoologia —sussurrou Daien apoiando-se no encosto de sua poltrona.

—Mas o asteróide ainda está lá.

—O quê?

—Ele diminuiu de tamanho, até que os sensores o perderam, mas agora voltou ao tamanho normal e está inchando como um balão... mas não possui brilho! A luz do Sol não se reflete nele!

Daien deixou um sorriso deslizar pelos lábiso.

—Aposto minha dentadura como aquela coisa aumentou o seu albedo.

Vilca confirmou com um aceno nervoso.

—Sim, —conseguiu dizer. —Ela deve abserver toda a energia dos elétrons, a tal ponto que eles deixam de ser estimulados pela radiação solar. Provavelmente alguns deles caem sobre o núcleo, reduzindo o volume da matéria e aumentando sua densidade e então, por estarem sob um maciço bombardeio de fótons, são super-energizados, incham e....

Para ilustrar a conclusão de Vilca, o asteróide, agora muito maior do que a primeira vez que o haviam detectado, brilhou numa explosão muda, depois sumiu atrás do eclipse virtual.

—Vamos sair daqui, —pediu Vilca. —Vamos voltar para a Terra e esquecer esse negócio de cristais de sais mercurianos. Dane-se a entrega, o capitão tinha toda razão.

Daien concordou com um gesto.

—Daqui a pouco essa coisa identificará nosso albedo e estaremos em apuros.

A porta se abriu subitamente e o cheiro de vodka feriu as narinas dos dois rapazes. Daien sentiu o estômago revirar ao mesmo tempo em que uma garrafa voou, espatifando-se contra a tela central, que estremeceu e apagou-se em seguida. Uma saraivada de cacos de vidro se abateu sobre o jovem, ferindo-lhe o rosto. O capitão saltou sobre os controles gritando histérico:

—Nãoo! A arraia! Vamos embora! Deus das estrelas, esse demônio vai comer a minha nave!

Vilca empurrou-o com violência, tirando-o de cima dos controles, jogando-o de costas contra um dos consoles que regulavam a temperatura. As coisas podem ficar muito quentes por aqui, ele pensou enquanto o capitão escorregava para o chão soluçando como uma criança, balbuciando palavras desconexas.

—Você está em ordem? — indagou ele para o companheiro.

—Estou, estou —respondeu Daien. Em seguida gemeu. —Oh, não. Essa não!

Vilca voltou-se para ele outra vez. Daien estava pálido e trêmulo, tirando os cacos da garrafa estilhaçada de cima dos controles.

—O que foi?

—Esse bêbado idiota! Esse maldito bêbado idiota!

Vilca agarrou o braço do companheiro e o sacudiu com força.

—Pare de praguejar! Isso não é informação!

Daien passou os dedos sobre o ferimento no rosto e mordiscou o lábio inferior.

—Ele danificou os controles de pilotagem automática. Temos de esperar que ele termine a contagem de tempo de órbita para destravar os controles.

Vilca olhou para fora, para o pedaço da arraia que viam na tela danificada. Lambeu os lábios. Rigel piscava através da cor, como se Órion fosse um caçador caolho.

—Quanto tempo? — perguntou, olhando para a “cor”.

—Duas horas.

O capitão soltou um ganido e por longos segundos, em toda a nave, o único som que se ouviu foi o dos soluços do homem sentado no chão da cabine de comando.

Meia hora depois, a arraia começou a se mover no espaço.

***

Vilca sentia os olhos ardendo mas não se atrevia a desviá-los do radar. Três asteróides já haviam sido “caçados” pela criatura. Eles haviam movimentado as câmaras e podiam observar agora cerca de três quartos da forma, mas isso parecia ser até pior do que vê-la por inteiro. A criatura combinava suavidade e rapidez numa estranha beleza.

Aparentemente possuía um radar próprio ainda mais potente que os da VIRGÍNIA 5, porque detectava suas presas antes dos sensores da nave. Quando isso acontecia, uma série de raios azulados atravessavam sua estrutura diáfana, e se concentravam em um ponto o mais próximo possível do asteróide em movimento. Depois dava o bote, o engolia, devorava a força de seus elétrons e o deixava partir rumo a sua inexorável destruição.

E depois aguardava novamente.

Atrás do painel de instrumentos, Daien tentava desarmar manualmente o piloto automático sem danificar o sistema de navegação da nave. Suas mãos tremiam e sentia o suor escorrer pelas têmporas frente ao emaranhado labirinto do sistema de navegação. Havia decidido fazê-lo quando calcularam a órbita da nave em relação à criatura e descobriram que em pouco mais de uma hora estariam tão próximos da arraia que não faria falta ela dar o bote para devorá-los. Até então haviam passado desapercebidos. Vilca imaginava que o movimento dos asteróides era o que primeiro chamava a atenção do caçador, mas já por duas vezes havia deixado de lado dois pequenos e rápidos asteróides, por dois outros maiores e mais lentos. Detectá-los era uma questão de tempo.

Daien gemeu e tentou encontrar uma posição menos desconfortável. Seus pulsos e ombros ardiam de dor. No início tudo correra bem, desativando um e outro sistema, desligando partes inteiras e tornando a ligá-las. Mais da metade da nave já estava aos cuidados do computador programado por Vilca. Os motores já lhe pertenciam, a mistura de ar, a temperatura. Quase tudo. Faltava apenas o sistema de navegação.

Uma gota de suor escorreu-lhe testa à baixo, e alojou-se incomodamente na ponta do nariz. Deuses, ele pensou, como faz calor aqui embaixo!

Foi então que um pequeno asteróide aproximou-se da área onde o VIRGÍNIA 5 estava parado. Como sempre, a arraia detectou-o primeiro e avançou lentamente em sua direção.

***

Vilca observou a grande mancha colorida mover-se alguns quilômetros. Atrás dele, o capitão ressonava destilando o odor da bebida por toda a cabine, cujo ar já parecia azedo. O rapaz sentia-se enjoado, cansado e sujo. Queria tomar um banho, dormir e só acordar quando estivessem em órbita ao redor de alguma colônia segura outra vez, em algum lugar onde ninguém acreditava em vida no vácuo.

“Se bem que, o que é vida? Um monte de álcool ressonando à suas costas ou uma criatura estupenda, fruto da imaginação interminável das estrelas, da evolução e da Natureza? Queria o senhor Sahlan estivesse aqui! Oh, sim, como eu ia rir da sua cara!”

Então pôs-se de pé de um salto.

—Daien! Ela nos encontrou!

Daien levantou a cabeça com força e bateu com ela na tampa que fechava o painel. Ignorou a dor e olhou por cima dela, horrorizado.

A criatura não os vira a princípio, porque saíra em perseguição ao asteróide. Por outra parte, o albedo da nave recoberta por uma fina camada de gelo era relativamente insignificante em comparação aos pedaços de gelo. Porém agora, a meio caminho da sua caçada, detivera-se lentamente, os raios de reconhecimento percorrendo seu corpo. Identificara uma massa enorme e metálica, que irradiava calor.

—Alguém se lembrou de pedir ajuda? — gemeu Daien.

—Não seja tolo! —ganiu Vilca. —Levariam três semanas para chegar até aqui, se viessem da base de Vênus.

A arraia hesitou um instante, depois começou a avançar na direção do VIRGÍNIA 5, disposta a vencer os 150.000 km que os separavam.

Daien soltou uma exclamação abafada e voltou ao sistema de navegação e o cheiro dos plástico aquecido misturado com o da bebida do capitão.

Súbito, os olhos do bêbado abriram-se grossos e cheios de raias vermelhas. Pôs as mâos diante do rosto e gemeu:

—NÃÃÃOOO!

—Cale-se! —gritou Vilca, satisfeito por poder tirar os olhos da criatura espacial. —Cale-se ou o porei a ferros em sua cabine.

O rapaz sentou-se diante de um instrumento que marcava a distância entre eles e a arraia, desligando o sistema de câmaras. As telas embranqueceram e as luzes da cabine acenderam-se imediatamente. Era um alívio deixar a criatura e toda sua exuberante impossibilidade do lado de fora. Mas ela estava lá. “Não se esqueça, disso, você não pode vê-la, mas está lá!” gritou sua mente. Seus olhos pousaram sobre o marcador digital e ele percebeu que estava tremento.

—Por favor, Daien —murmurou,—ande depressa.

—Distância? —a voz de Daien era um som cavo e metálico e Vilca estremeceu.

—100.000 km.

Daien mordeu os lábios e nem notou que eles sangravam. Suas mãos pareciam hábeis aranhas tateando na finíssima teia de suas possibilidades. Sabia que não faltava muito, nem para que ativasse o sistema propulsor, nem para que a criatura os alcançasse.

—Maldita seja a hora em que eu disse que queria saber se essa história era real ou não! —praguejou.

Pegou um fio e o puxou delicadamente. Mas o plástico saltou de suas mãos como uma mola, ameaçando enrolar-se nos demais. Novamente Daien o puxou, trazendo um emaranhado verde junto. No emaranhado surgiu uma brecha e, lá no fundo, uma placa de cristal onde se faziam as conexões. Era só mudar um ou outro fio de lugar. Ele enfiou a outra mão através da brecha, com a precisão de um médico.

—Está a 50.000 km —anunciou Vilca.

—Muito bem. Quando eu contar três, você liga os propulsores e pouco me importa se vamos direto rumo ao Sol ou nos esborrachamos contra Mercúrio —resmungou o engenheiro alterando uma das conexões.

—Um...

A mão de Vilca pousou sobre o “enter” de seu console. Repassou mentalmente a rota programada pela enésima vez e estremeceu. Sabia que se o apertasse cedo demais, a faísca provocada mataria Daien e o deixaria irremediavelmente à mercê da arraia.

—Dois...

—Ela está à 25.000 km. Suponho que esteja preparando o bote.

Vilca surpreendeu-se pois apesar do seu corpo todo tremer, sua voz soou firme.

Daien moveu um pino em direção ao buraco onde deveria encaixar-se para terminar o serviço, mas deu-se conta de que tremia demais para colocá-lo no lugar.

—Merda, —gemeu irritado e passou a mão esquerda sobre os olhos. Depois respirou fundo e tentou de novo.

O pino escorregou de suas mãos para dentro do buraco e desapareceu, encaixando-se suavemente no cristal.

—Três! Três! —gritou, puxando a mão com violência, arriscando-se a puxar consigo todo o sistema de fiação.

O dedo de Vilca caiu sobre o “enter” com força.

Uma centelha saltou do dínamo e espalhou-se quente como a vida nos controles da nave. A VIRGÍNIA 5 iluminou-se, saltou para frente e começou a sair da órbita de Mercúrio.

No mesmo instante, a criatura saltou em sua direção.

—Estamos nos movendo! Estamos nos movendo! —gritava Daien prensado no chão da cabine pela aceleração.

—Ela também.

—O quê?

—Ela deu o bote. Está à 15.000km.

Um silêncio. Daien deixou de resistir contra a aceleração que os tirava das garras gravitacionais de Mercúrio e percebeu que estava rezando, balbuciando qualquer coisa parecida com uma oração.

—10.000km.

Outro silêncio. Agora o capitão gemia alto, amaldiçoando seus ajudantes e as estrelas.

—5.000km e caindo. 3.000km. 2.000km. 1.000km.

A voz de Vilca era um sino dobrando fúnebre numa cidadezinha do interior, fuzis anunciando a morte de um soldado, o som dos esquifes sendo sugados pelo vácuo em estações espaciais.

—900km. 800km.

Ambos imaginavam como seria ter cada átomo do corpo em colapso. Haverá dor? Não, não haveria tempo, pensou Daien. Consciência? Vamos pensar até o último instante antes da absorção maciça de energia do Sol provocar a explosão final? Talvez não, se os pensamentos são correntes de eletricidade no cérebro. Pensaremos quando ela nos devorar? Saberemos que somos parte de uma maravilhosa criatura do espaço? Daien fechou os olhos, depois abriu-os em pânico, odiando a escuridão.

O silêncio prolongou-se. Estendeu-se. Então o rosto cansado de Vilca surgiu sobre a aba do console. Estava pálido e tinha olheiras.

—Saia daí. Ela está à 1.000km, —disse.

—O quê? —engasgou-se Daien.

—Parece que a criatura não pode seccionar-se. Está encolhendo outra vez. Saia daí, companheiro, nós escapamos.

***

Vilca e Daien estavam sentados na minúscula cabine de recreio do VIRGÍNIA 5. Vilca bebia um preparado de vitaminas e sais minerais e Daien jogava xadrez com o computador. Estavam à dois meses de casa.

—Ninguém vai acreditar em nós, —resmungou Daien movendo um peão.

—Temos tudo gravado, —murmurou Vilca, estóico.

—Sabe o que me intriga? —prosseguiu Daien como se não tivesse sido interrompido. —Se ela é uma criatura viva que não pode dissociar-se, onde estava quando chegamos? Você disse que ela foi acendendo as luzes uma por uma, até...

—Até a configuração final —concordou Vilca. —Era nisso que eu estava pensando.

Os roncos do capitão chegavam até eles melancólicos e solitários, porém seguros. Vilca sorriu:

—Não sei se você vai acreditar em mim, mas terá de engolir. Afinal, você foi o primeiro de nós dois que reconheceu vida na arraia.

Daien encarou o sorriso do companheiro compreendendo como era raro vê-lo sorrir, e piscou curioso.

—O que você acha que ela estava fazendo quando chegamos? —perguntou, impaciente.

—Ela estava dormindo, Daien.

O rapa ficou pensando, depois sacuidu a cabeça, incrédulo.

—Com o que sonharia uma criatura dessas?

Vilca deu de ombros.

—Com comer asteróides, com devorar cometas, com transformar-se no Sol. Com visitar as estrelas, como nós, quem sabe?

—Ninguém vai acreditar em nós, —repetiu Daien e descobriu, decepcionado, que o computador comera-lhe a dama.

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