domingo, 9 de novembro de 2014

Umidade

Em 2013, vários escritores passaram a noite na Biblioteca Pública do Estado, com o intuito de criar contos de terror, dentro de um evento chamado "Tu, Frankenstein - II". Eu produzi dois contos. "O Pianista", publicado na coletânea "Tu, Frankenstein - II", editado pela BesouroBox e lançando no dia 08 de novembro de 2014, no CEEE Érico Veríssimo, dentro da programação da 60ª Feira do Livro de de Porto Alegre, noite em que outro grupo de escritores foi convidado para virar a noite escrevendo, no mesmo local. O outro conto que produzi, então, ofereço aqui aos leitores do Porteira da Fantasia - Contos.


Ninguém sabia ao certo quando começou. A princípio era só uma sombra em uma das esquinas da parede, uma coisa leve e amorfa, diáfana, mesmo. Passou desapercebida. Parecia que bastava com abrir alguma das janelas, ou passar um pano e se desfaria. Deixar passar o ar.

O caso é que ali, abrissem as janelas que fossem, jamais havia sol e jamais a brisa soprava diretamente. Não naquele canto. Nunca.

Depois de algum tempo, a sombra leve escureceu. E às suas bordas desenhou-se como que um halo cinzento que ia, pouco a pouco, engolindo a tintura da parede, a demã mais superficial, um cinza claro, um pouco azulado, triste e quedo como um suspiro. O miolo da mancha, tornou-se cada vez mais escuro, aumentou, ganhou volume. Em breve, era tão escuro que o cinza azulado se dissolveu em seu interior.

Veio o inverno.

A biblioteca, com seu acervo delicado de polpa antiga e volumes raros, tremia diante da umidade que ganhava a cidade, vinda do Guaíba, soprada pelo vento da estação. Às vezes intercalavam-se largos dias de mormaço insuportável, um cobertor que antecedia as frentes frias vindas do sul e que traziam em si mesmas, dias e dias de chuva fina e constante, constante, fina, e de novo constante. Semanas inteiras de chuva sem trégua, como se fosse o sítio de alguma guerra invisível e interminável.

O salão ficou fechado por quase um mês inteiro.

Quando por fim abriu o sol, e a calçada secou sob o sopro inclemente do Minuano, e a mui valerosa cidade de Porto Alegre respirou cinco graus centígrados, saudando o frio como se não conhecesse a miséria, a bibliotecária decidiu fazer uma espécie de ronda pelas salas, abrindo as janelas, ordenando faxinas aqui e ali, revisando os parquês antigos, os móveis históricos, os armários de portas de vidro e cristal. Não esqueceu o salão vazio ao lado do acervo. Abriu as janelas com alegria, até. Respirou a brisa fria repleta do rugido ensurdecedor da Riachuelo com prazer. E quase não percebeu a mancha no canto da parede.

Era uma coisa enorme e achatada. Cobria dois, talvez três, dos seis metros de altura do salão, começando no centro da esquina e espalhando-se de forma abjeta pelas paredes e na direção do teto. Um cheiro desagradável preenchia aquele recanto, algo entre o reboco apodrecido e gesso ainda molhado. O rosto da bibliotecária se contraiu, encarando o mofo como se fosse uma barata em sua cozinha – e ela, particularmente, não tinha medo de baratas. Um chinelo era tudo o que necessitava para livrara-se da peste, e não tinha pudor algum em brandi-lo em chão, paredes, pias, portas, armários, o que fosse.

Chamou o zelador do prédio. Que naquele dia, informaram-lhe, estava de folga, porque tinha ido ao dentista. Mas, no dia seguinte, ele acudiu prestativo ao chamado, assim que chegou.

– Isso vai dar trabalho – ele comentou com um suspiro, enquanto coçava a cabeça meio careca. Espiou o olhar severo da mulher e suspirou de novo, resignado. – Vou fazer uma lista do que vamos precisar.

A lista era longa. Alguns dos materiais pedido, não constavam no almoxarifado e precisavam ser comprados fora. Foi preciso fazer um documento especial, que levou seu tempo costumeiro para tramitar pelos meios legais.

Outras frentes frias fizeram sua entrada triunfal no estado, antecedidas de mais mormaço e seguidas de períodos longos de chuva.

Fina e constante.

O salão teve de permanecer fechado por longos períodos, a fim de preservar o chão antigo. Nos poucos dias de sol e frio, a bibliotecária abria a sala, na tentativa de refrear a mancha. Cada vez mais agourenta, ela agora tomava quase todo canto da parede, inclusive o canto superior, onde parecia ter se acumulado e adquirido uma textura diferente, aveludada, negra.

O pedido foi finalmente aprovado. A primavera deu os ares da graça. A praça da Alfândega se encheu de jacarandás floridos e livros. Cheiro de pipoca e som de orquestras e risos de crianças.

Mas ali, no salão cinzento, o vento que entrava com o cheiro e o som distante da mais tradicional feira da cidade, era imediatamente corrompido pelo odor cada vez mais acre do mofo. O material de limpeza chegou. O zelador, a bibliotecária e toda a equipe resolveu usar o final de semana de folga e limpar o salão. O que era um trabalho, virou quase um piquenique. Muito riso. Alguém trouxe um rádio. Teve dança do pezinho no salão nobre. Houve um momento de tensão e depois de gargalhadas, quando a bibliotecária se desequilibrou, no alto da escada e teve de se equilibrar com mãos, rosto e peito contra a mancha corrupta. Ela ficou com a metade da face limpa e a outra metade totalmente escura, onde só se viam os olhos e, na foto que alguém tirou com o celular, o sorriso meio contrariado. Foi parar na internet. Duzentas e quarenta e três pessoas curtiram, entre eles seu ex-marido (que aproveitou para divertir-se às suas custas), seus dois filhos e sua mãe, que tinha feito um curso de informática e agora tinha Facebook.

Depois de tudo pronto e o canto limpo, fora todos comer uma pizza. Duas das moças da equipe se desculparam alegando que estavam com dor de cabeça. Tinham renite.

Na segunda-feira, o salão estava limpo novamente e a bibliotecária sorriu com superioridade para o canto até então encardido, quando abriu as janelas pelo breve espaço de uma hora, antes que começasse a chover novamente. Como de hábito, o restante da feira de livros foi composta de dias chuvosos, cinzentos e quentes. A bibliotecária fez um levantamento fotográfico acurado do canto até então engolido pelo mofo. A mancha, totalmente removida, deixara para trás uma marca clara onde devorara a tinta cinzenta. Onde houvera o halo, a tinta superior estava levemente corroída, mas a medida em que o olho se deslocava para o centro da mancha clara, era possível perceber que a tinta estava rachada e esmaecida. Curiosa e intrigada, a bibliotecária chamou o zelador e pediu que trouxesse a escada. Subiu nela e observou a superfície de perto: o cinza azulado estava solto e esfarelado. Ao tocar a parede delicadamente com a ponta dos dedos, uma placa se soltou, revelando a pintura original do salão, uma espiral amarelada, que separava temas de folhas roxas e vermelhas. A mulher estremeceu.

– Tá tudo bem, chefa? Se ficar tonta, eu posso subir – ofereceu-se o zelador que até aquele momento se limitara a segurar a escada com uma expressão completamente absorta no nada.

– Pode deixar – ela murmurou, subindo mais dois degraus, até no topo do salão. Inspirou fundo antes de tocar a superfície, agora frágil.

Uma parte do reboco soltou-se imediatamente, revelando os tijolos. No interior do cimento que unia os tijolos, pequenos e macabros veios negros se afundavam como raízes. A bibliotecária rosnou um palavrão e o zelador, lá embaixo, levantou os olhos, surpreso com o vocabulário.

Prática, a bibliotecária voltou para o escritório que ocupava no subsolo, cuja principal fonte de luz era a porta de vidro que dava para o velho jardim de inverno da biblioteca, um retângulo tímido no fundo dos três andares do corpo principal da construção. Um dia abrigara bancos, plantas e estruturas de metal para que gavinhas formassem um caramanchão, mas eis aí uma coisa que jamais vingou. Talvez fosse que batesse pouca luz, ou talvez, que pouco ou nenhum ar de fato circulava lá por baixo, ou que fizesse muito frio no inverno, ou que a fonte no centro do retângulo, uma fonte que tornava o espaço ainda menor e mais apertado, dominado por uma estátua de bronze agora azinhavrada e escura, tornava o espaço úmido e sombrio e tão desagradável que a bibliotecária se recusava a abrir a janela, a menos que fosse insuportavelmente quente.

O que, no momento, não era o caso.

Enfim, ela foi ao seu escritório e redigiu uma carta, acrescentou fotografias, preparou um relatório e ao cabo de alguns dias, enviou tudo em três cópias, solicitando urgentemente a presença de um restaurador a fim de fazer um laudo técnico, para que pudessem dar início a um processo que, esperava, terminaria por reverter o estrago.

Um dia no futuro.

O zelador entrou de férias.

Houve sol e calor, o sol e o calor que antecedem os temporais. Choveu forte. Algumas velhas goteiras deram o ar da graça. Apareceram algumas goteiras novas, que ninguém imaginava de onde estavam vindo.

Uma infiltração surgiu no salão cinza. Todo o canto que fora atingido pelo mofo, molhou-se como tinta nova escorrendo pela parede. As raízes negras do mofo atingiram as rachaduras do reboco.

Uma mancha cinzenta apareceu no arquivo do acervo. Foi atrás de uma estante, na parede que o separava do salão cinzento e logo não foi detectada. Em todo o caso, a diferença, agora, não era a sua presença. Era o tempo. Em questão de minutos, surgiu. Em duas horas, estava constituída. No final da tarde, ocupava uma área considerável.

No dia seguinte, estava na parede interna da estante.

Outra mancha surgiu, no salão do piano. Mas como a parede era particularmente adornada com motivos mouriscos, só foi detectada quando devorou o dourado velho.

Uma das moças que sofria de renite, pediu dispensa. A outra não veio mais trabalhar.

A bibliotecária dobrou o turno. Com o horário de verão, comentava, dava até prazer sair um pouco mais tarde. Ainda era claro, em torno das sete meia e às oito horas ainda era possível passear com relativa tranquilidade perto de casa. Quando o outro rapaz da equipe avisou que precisava viajar para o enterro de um parente, em Uruguaiana, ela simplesmente deu de ombros e assinou a dispensa. Dava igual. Mais ninguém da equipe ousava subir ao segundo andar da biblioteca. Quando muito, iam até o acervo. A estante, comprometida pelo mofo, era como um animal imóvel e raro no fundo de um corredor, à espreita. Tinham conseguido salvar parte do material depois de uma tarde inteira de muita lamentação, mas agora, todas as estantes apresentavam manchas escuras de bolor e não havia mais para onde levar os velhos livros. O salão cinzento permanecera fechado na última semana e ela tinha medo de entrar lá. Da última vez, as paredes apresentavam veios negros por onde o mofo se espalhava e ela não comentara com ninguém mas tinha a impressão de que os veios pulsavam.

Naquele final de tarde, demorou-se mais do que o costumeiro. Fechou todas as janelas da fachada, como num ritual. Parou junto da porta do salão cinzento ouvindo, como se pudesse ouvir o reboco estalar, partindo-se e se esfarelando sob a ação da criatura que agora habitava a biblioteca. Tocou a maçaneta de bronze. Pareceu-lhe estranhamente cálida e extremamente seca. Baixou-a e empurrou. A porta não cedeu passagem. Empurrou com mais força, e mais e mais, até que ouviu um estalo alto e a estrutura de madeira ruim com um estrondo, ruindo para o interior do salão, de onde emergiu uma nuvem cinzenta que flutuou diante dela, e depois avançou com a brisa que o movimento das folhas carcomidas tinham feito ao tombar, abraçando-a, pousando em sua pele como uma carícia asquerosa, mesclando-se ao seu suor, penetrando suas narinas, sua boca, seus olhos e ouvidos.

A bibliotecária recuou com um grito surdo, a boca áspera, um sabor grotesco de pó, madeira barro, areia, decomposição, corrupção. No fundo, como o retrogosto de um prato exótico, um sabor metálico que a fez pensar na estátua de bronze da fonte do jardim de inverno.

Ela virou-se, os olhos lacrimejando, os cantos das pálpebras colando. Esfregou os olhos em agonia. Gemeu de dor e cambaleou pelo salão mourisco, percebendo o quanto ele estava escuro, enxergando por fim as pernas do piano negro cobertas pelo mofo aveludado. Apoiou-se em uma das pesadas colunas de mármore e ela inclinou-se, ruindo um canto do pé de pedra, também coberto pelo mofo, oculto pela sombra de um armário. E depois foi ganhando a entrada do acervo, sem olhar, sem olhar para o interior, as lágrimas agora escorriam pelas suas faces, os olhos coçavam, mas ao fechá-los com os dedos demorava para conseguir abri-los. No alto da escada hesitou, oscilando. Desceu degrau por degrau, as mãos agarrando o corrimão de bronze, deixando sobre ele um rastro de pó cinza escuro, pele, sangue e carne em decomposição.

Achou que ia conseguir chegar à porta.

Seus pés se desfizeram entre um passo e outro, a carne devorada de dentro para fora desde aquela tarde no alto da escada, os ossos esfarelados e amarelos como os de um cadáver. E antes de ela arrebentar o crânio no chão de velhos ladrilhos verdes e amarelos, ainda conseguiu ver os cotos dos braços cobertos do mofo aveludado que se espalhava pelo teto, pelas paredes, pela sua morte e pelo silêncio cravejado de buzinas e rugidos e motores e gritos de passantes anônimos que ecoavam para além da porta fechada.



domingo, 25 de maio de 2014

Capítulo: O primeiro dia no Tabuleiro a gente não esquece

Nos últimos tempos, muita gente tem se mostrado surpresa quando eu comento que tenho livros infanto-juvenis e juvenis, como se o fato de ter editado, principalmente, textos infantis, no início da minha carreira fosse um fator determinante e vitalício. Pois bem, não é.
Também existe a discussão Fantasia Europeia X Fantasia de fundo cultural brasileiro, como se uma excluísse a outra. Coisa com a qual não concordo. Acho que se pode perfeitamente ler, escrever e se divertir muito com ambas. Apenas acredito que fazemos escolhas para cada história.
Há anos que tenho material infanto-juvenil e juvenil. A questão é que, por razões que eu não entendo muito bem, as pessoas não parecem conhecer esse material apesar dele já ter estado completo, na rede, de graça.
Por isso, resolvi disponibilizar um dos capítulos da primeira parte de "O Jogo no Tabuleiro".
Se você se interessar em ler o livro todo, há duas opções. Uma delas é adquirir o volume em papel, através do Clube de Autores, clicando AQUI. A outra, é adquirir o  e-book, através do Amazon, clicando AQUI.
Agora, se você já leu, pode passar pelo Skoob e deixar sua avaliação por lá (veja AQUI). Eu vou ficar muito feliz.
A todos, boa leitura.


"6.

            Despertamos bem cedo. Bulbo providenciou para que acordássemos com o cheiro de leite quente penetrando as narinas e o aroma de pães dourados. Cíntia sentou-se, espreguiçou-se com uma cara alegre, olhando ao redor. O sorriso desapareceu. Pensei que ia chorar mas controlou-se. Em cima de uma pedra no meio da caverna secundária que nos servira de quarto, havia uma bandeja com quatro copos de barro e um bule fumegante.

            – Hum, que fome – disse Edula despertando ao meu lado. Sorri-lhe e tratei de me sentar, desejando um banho e um pente.

            – Bom dia, meninas! – gritou Cezna alegremente, voando pela porta, enrolado em um lenço. Cíntia encolheu-se e desviou o olhar dele com um gemido.

            – Puxa, vocês acordam com um humor do cão, né?

            – Não fale comigo antes da primeira xícara de leite – murmurei engatinhando para a bandeja. Dormíramos no chão, sobre pelegos quentes, peludos e duros, apesar do "colchão" de musgo por baixo deles. Minhas costas estavam me matando.

            – Vou avisar Faiald que estão todas acordadas. Bulbo fez umas broas de polvilho como nunca provei igual!

            – Gostaria de saber onde é que ele consegue farinha e açúcar para as tais das broas – murmurou Márcia sentando-se.

            – Disse que vai à Arrelipe uma vez a cada três meses. É uma espécie de cidade – explicou nosso amigo voador, pousando junto a mim. Enchi um dos copos de leite e sorvi-o com cuidado. Era delicioso. Era como o Natal entrando pela garganta.

            – Estamos quase prontos com as mochilas – reclamou Cezna. – Vocês dormiram demais!

            – Por que não nos chamaram? – redargui, dando de ombros.

            – Com quem você está falando?

            Olhei para Edula e depois para Cezna, que me encarava com um sorriso mandrião no rosto. Aquilo devia querer dizer algo, eu tinha certeza, mas não sabia o quê era.

            – Com Cezna, claro.

            – Ele não disse nada – murmurou a guerreira.

            – Não temos culpa se Edula está surda como uma velha caduca, temos Cida? – perguntou o alado erguendo voo. Esperei que ela reagisse ao comentário, mas tudo o que fez foi bocejar de novo e esticar-se toda.

            Partimos por volta de dez da manhã, sob uma saraiva de reclamações por parte do gnomo, por causa do horário adiantado, mas, também, muitas tarefas foram deixadas para a última hora. Por exemplo, a vaca que Bulbo ordenhara para nos suprir de leite, teve de ser posta para fora do curral e a portinhola foi deixada aberta, para que o animal encontrasse um abrigo na ausência do gnomo, que deixou o cocho forrado de ração para ela.

            – Ai, ai, pobre da minha Margarida – lamentou ele acariciando o focinho que havia baixado até a altura dele. O gnomo ficou um instante em silêncio, depois a vaca soltou um longo e triste mugido e se afastou na direção da clareira onde tínhamos encontrado Faiald no dia anterior.

            – Eu disse à ela que terá de se virar sem mim daqui por diante. A comida que deixei não vai durar dois dias, eu sei, porque ela é muito gulosa, e vacas tendem a esquecer coisas importantes como o fato de que eu não voltarei para cuidar dela. Mas, se tiver sorte, até o final da semana irá procurar o palácio do Olmo Azul, onde nasceu. Lá eles cuidarão dela.

            – Quem sabe se você não voltará? – indagou Edula ajeitando a bagagem que ia levar nas costas. – Faiald não voltou?

            – Voltar significa derrota – disse o ruivo passando por ela. – Vamos ser otimistas e pensar que Margarida terá de encontrar o palácio dos gnomos.

Cada um levava uma mochila feita do próprio cobertor, alguns nacos de carne salgada, trufas, biscoitos secos, uns poucos pães, sobreviventes do café da manhã, e frutas cristalizadas. Faiald contava em encontrar caça e frutas frescas pelo caminho, além de peixes e ovos, que o gnomo e Cezna se encarregariam de recolher dos ninhos. Levávamos ainda, seis capotes de lona, para quando chovesse, e nossas armas: uma espingarda de cano duplo, uma espada e um punhal. E como se não bastasse, cada mochila levava de acréscimo arreios de couro bastante pesados que seriam muito úteis mais adiante, segundo  Bulbo.

            Ao sairmos da caverna, o gnomo trancafiou a pesada porta com uma chave esverdeada de azinavre e a engrenagem guinchou de preguiça e desuso. Ele a depositou em um buraco da parede e tapou-o com uma pedra. Saímos para a manhã luminosa da Floresta Ujier, emergindo dentre as raízes com uma sensação agradável de leveza. Bulbo foi o único a olhar para trás e comentar:

            – Que pena! De certo, aparecerá uma família de lobos ou um urso que terminarão morando no meu canto.

            – Existem lobos, aqui? – perguntou Márcia, espantada.

            – E morcegos, unicórnios e mais uma porção de criaturas que tem o hábito de surgir detrás das moitas quando menos se espera – confirmou Faiald. Parecia orgulhoso ao olhar ao redor com um longo suspiro. Perguntei-me se eu seria capaz de abandonar tal lugar, assegurado contra o ruído de automóveis e o cheiro do asfalto quente, o calor infernal e a descoloração das cidades. Ali o ar era leve e claro, o chão tão macio quanto um tapete, composto de folhas secas, musgo e terra negra. Em vez do burburinho incompreensível, corria a brisa e o silêncio pairava suave em meio a sombra, um silêncio que de vez em quando se despertava num bocejo que era o murmurar de um riacho.

            Na região onde estávamos, a mata recebia a alcunha de Floresta dos Espinheiros. Não foi difícil adivinhar a razão para o nome. Havia espinheiros espalhados por todos os lados, e roseiras enormes com flores perfumadas pendendo dos galhos.

            Caminhamos por bastante tempo em silêncio. Faiald resolvera atalhar através da mata, entrando na estrada uns dois ou três quilômetros adiante, fugindo de uma grande curva, e saindo muito além da clareira onde o tínhamos encontrado. A medida em que andávamos, a floresta tornava-se mais sombreada e o musgo mais áspero, desprendendo um cheiro agreste que confundia-se com o das roseiras. Os troncos das árvores eram grossos e nodosos, e às vezes parecia haver caras desenhadas neles, caras sonolentas, engraçadas, bonachonas. Embora não fizesse ainda uma hora que andávamos, já estávamos suando pelo esforço. De vez em quando vislumbrávamos entre os arbustos mais nus ou nos galhos velhos e nos troncos podres, serpentes cujas cabeças assemelhavam-se às dos dragões dos livros de crianças, raposas de caudas grossas e peludas que nos espreitavam com os olhos negros muito brilhantes e assustados, mãos-peladas e suas carinhas de saltimbancos, e esquilos espantados e curiosos que corriam nos galhos, saltando de uma árvore para outra com incrível agilidade. Cedo compreendi que a paz beatífica que eu pensara haver no começo da caminhada, era ilusória. Também ali havia regras de trânsito e era preciso aprender a ver os sinais de tráfego da floresta. Mas era divertido e eu parava com frequência para admirar as criaturas da floresta e todo mundo reclamava por causa dos atrasos que eu terminava provocando.

            Aos poucos, a sombra da mata foi substituída por uma claridade anormal, branca e fria. Um odor acre e desagradável sobrepôs-se ao perfume das roseiras, mas eu me senti mais à vontade e pareceu-me, afinal, que aquela conversa sobre feras, ursos e lobos fora só para assustar-nos. O Jogo ia ser como um piquenique de verão! Os animais fugiam ao ouvir nossos passos e as aves cantavam sobre nossa trilha como se fossem anjos da guarda. E ao pensar nisso, dei-me conta de que não ouvíamos mais pássaro algum desde que penetráramos naquela parte clara da floresta.

            Faiald caminhava é frente, absorto, não prestando muita atenção na direção em que nos guiava. Por que o faria? Conhecia bem o lugar e tinha coisas mais importantes para se preocupar do que as belezas ou esquisitices de seu lar. Mas nós não éramos imunes a nenhuma dessas impressões. E Bulbo, que caminhava à retaguarda, estava muito mais atento do que ele. Foi o gnomo que, de súbito, parou e disse com a voz tensa e desafinada como um agudo de violino mal feito:

            – Faiald! Acho melhor voltarmos!

            Voltei-me, encarando-o surpresa, descobrindo que seu nariz vermelho ficara cinza, de tão pálido.

            – O quê ? – murmurou o ruivo voltando-se para ele. O pequenino apontou com o polegar para cima, os olhos faiscando de medo. Eu ia erguer o rosto para ver o que estava se passando sobre nossas cabeças quando ouvi o grito de Cezna. Era um grito pavoroso que brotava da alma e me fez gelar dos pés à cabeça, imobilizada de pavor enquanto meus pensamentos disparavam em imagens borradas.

            – Socorro! Meu Deus, me ajudem! Socorro!

            – Essa não ! – sussurrou Faiald saltando para o lado e puxando a adaga de sua cintura com violência. – Onde está ele? – perguntou voltando-se. Levei alguns segundos para compreender que se dirigia é mim.

            – Como é que eu vou saber? – repliquei assustada.

            – O que está acontecendo? – perguntou César ao lado de Márcia.

            – Ajudem-me! – berrou a voz de Cezna em algum lugar acima de nós, horrorizado. Parecia algo fora de hora e de lugar. O que podia haver para temer ali? – Pelo amor de Deus, ajudem-me!

            – Onde está você ? – perguntei e foi como se tivesse aberto uma comporta por onde o medo dele entrou e me inundou. Oh, meu Deus, e que medo era aquele! Me contraí com violência quando imagens começaram a tornar-se nítidas em minha mente. – Onde? – consegui balbuciar.

            – Não ! Afaste-se de mim! Afaste-se de mim! – gritou ele, oculto pelas ramagens.

            As imagens focalizaram-se. Já não eram borrões sem sentido. Tinham forma e movimento.

            Tinham olhos.

            E minhas pernas pareciam ter se fincado no solo, endurecido feito raízes de carne.

            – Ah, não ! – gemi quando consegui reconhecer o que via. Preferia que aquilo tivesse continuado indefinível. Se continuasse olhando aqueles olhos, para aqueles corpos imensos que avançavam para devorar-me o cérebro, teria um infarte e morreria antes mesmo que seus bafos almiscarados, seus palpos viscosos chegassem perto de mim.  

            Agachei-me e olhei para cima.

            A visão sumiu. Não via mais a criatura e, Deus, eu não queria dizer-lhe o nome, como se o simples ato de pronunciá-lo fosse em palavras ou pensamentos, a tornasse real. Fora só uma ilusão! Aquela coisa não podia ter qualquer vínculo com a realidade!

            Acima de nós, entre os galhos cerrados, uma capa branca e fosforescente se espalhava pelas folhas e árvores, criando um teto que nos ocultava o sol e as altas ramagens.

            – Temos que fazer alguma coisa! – gritei.

            – Do que é que você está falando? – berrou Edula ao meu lado com a espada em punho. – Onde está ele?

            – Eu não sei! – solucei. Não queria acreditar no que vira e no entanto era preciso agir o mais rapidamente possível, antes que Cezna tivesse a pior das mortes.

            Antes que os olhos, os quatro pares de olhos se detivessem em nós com seus reflexos famintos nas órbitas globulares.

            – Ah, meu Deus, é uma aranha! Enorme! Muito grande mesmo!

            – Para trás! – gritou Faiald empurrando Edula bem no momento em que algo saltou da árvore, algo marrom como o musgo onde caiu, camuflado, e grande como um gato. Olhei a coisa atordoada, e pisquei.

            O bicho não era maior?

            Claro que era. Tinha o tamanho de um homem!

            Então como essa daí é tão "pequena"?

            Olhei fascinada a criatura que se aproximava de mim correndo pelo chão como um bicho de corda.

            “Vai ver”, tentei me consolar, “vai ver que essa daí é um filhote...”

            Pulei para o lado. Grande como um gato, eu pensava, só que a outra é maior ainda.

            Olhei de novo para cima e foi então que comecei a gritar.

            Havia dezenas de aranhas presas na teia, pendendo das árvores, balançando-se nos galhos acima de nós.

            – Cristo! É uma colônia de aranhas! – sussurrou Márcia toda arrepiada. Cíntia estava pálida demais e César mordia os lábios com violência.

            Eu continuava gritando.

            A capa branca, cuja fluorescência iluminava aquela parte da floresta, não era mais do que a imensa teia de uma colônia de aranhas. Por isso não havia pássaros, serpentes ou insetos naquela região: elas tinham devorado tudo o que não fugira a tempo.

            Faiald correu para frente, largando a espada e engatilhando a arma de cano duplo. Os outros reuniram-se ao meu redor, munidos de paus e das poucas armas que tínhamos.

            – Onde está Cezna? Onde está?

            Eu olhava para cima, aterrorizada, sentindo-me como se tivesse aberto uma ferida no meu cérebro por onde se derramava fogo e ácido. Aquilo não podia estar acontecendo. Não existem aranhas do tamanho de um gato, simplesmente não existem!

            Meus olhos se focalizaram sobre uma massa branca que agitava-se no meio das folhagens, as asas de bronze enredando-se cada vez mais nos fios pegajosos.

            – Faiald! – gritei. O ruivo voltou-se para mim e apontei-lhe com o braço onde estava Cezna. Uma das aranhas já quase sobre ele e três outras aproximavam-se. Damin apontou a espingarda ao animal mais próximo ao nosso amigo e disparou, transformando-lhe o corpo numa massa informe. As outras aranhas detiveram-se para devorar seus restos. As que estavam mais distantes se aproximaram com agilidade e pressa, num balé grotesco.

            – Vamos! – gritou ele. Brandiu a adaga e cortou a massa branca em torno de Cezna. – Enquanto essas ali se banqueteiam, podemos avançar!

            – Vamos recuar! – opinou César.

            – Estamos no meio da colônia – ofegou Bulbo com o punhal na mão. – Tanto faz voltar ou seguir adiante.

            – Andem! – empurrou-nos Márcia, desviando-se de um dos bichos. – Elas estão descendo!

            Com efeito, desciam atropelando-se, rolando pelos troncos como bolas de pelo hirto, até que tocavam o solo. Então abriam as pernas e punham-se a caminhar, medonhas feito pesadelos.

            – Corram! – gritou César, fazendo um gesto esquisito e resmungando algumas palavras. No mesmo instante, duas das criaturas mais próximas incendiaram-se, agitando as pernas em horrenda agonia.

            – Edula! Atrás de você!

            Edula voltou-se imediatamente, pálida, ágil, brandindo sua lâmina com decisão. Um animal caiu aos meus pés, partido em dois. O interior dele era uma massa de viscosidades pardas que escorriam para o solo e umedeciam a terra. Uma segunda criatura saltou para cima do corpo morto e atacou-o com abominável gulodice. Senti meu estômago se revolvendo de asco e tudo ficou escuro por um momento.

            Se eu cair agora, é o fim! – murmurei para mim mesmo. Mantenha-se de pé ! Ande com seus amigos, você está atrasando todo mundo. MEXA-SE!

            Comecei a caminhar lentamente seguindo o grupo. Era o máximo que eu conseguia fazer e me envergonhei disso, porque os outros estavam reagindo com firmeza. Cíntia, passado o primeiro pânico, agora segurava um galho seco com determinação, atingindo os animais com pontaria certeira, atordoando-os. Márcia imitava-a, embora não tivesse e mesma mira nem agilidade.

Súbito, uma das aranhas, um pouco menor do que as outras, mas nem por isso menos assustadora, conseguiu subir no ramo que ela segurava e correr em sua direção. Márcia largou o galho com um grito de alerta, mas era tarde demais. A aberração grudara-se em sua mão com os dentes vermelhos e lutava para agarrar-se com as patas peludas no braço de minha amiga. A irmã do mago abriu a boca, os dentes brancos sobressaindo-se na cavidade escura, mas não conseguiu gritar. Não saía nenhum som de sua boca aberta. Ela sacudia o braço e abria a boca e aquela criatura doentiamente GRANDE agitava as pernas em busca de apoio para o corpo com um abdômen IMENSO que pendia e pesava, balançando-se como uma bola de natal presa a um galho durante uma tempestade.

            Ergui o pé num chute e o bicho voou longe, feito uma bola de futebol.

            Mas antes, arrebentou na ponta da minha bota, como uma bexiguinha, cheia de água.

            Só que não era água.

            Era um ovo. Um ovo cheio de milhares de pequenas aranhazinhas brancas, mas não tão pequenas que eu não as visse. Fiquei olhando para elas, vendo como subiam no cano da bota, caiam no solo, corriam e saltavam. Tudo estava ficando muito escuro de novo. Cambaleei. Alguém segurou o meu braço.

            – Firme, Cida – disse a voz de César junto ao meu ouvido. Senti uma pressão na canela e quanto voltei a olhar, as criaturinhas tinham sumido e um cheiro forte de álcool subia lá de baixo.

            – O que aconteceu? – balbuciei, atordoada.

            – Que espécie de mago eu seria, se não fosse capaz de conjurar um bocado de álcool para acabar com essas crias? – ele respondeu me empurrando com força.

            – Vamos andando, não parem! – berrou Bulbo empurrando as minhas pernas. Eu segurei a mochila e concentrei-me na ponta das botas.

            Um passo. César, ao meu lado fazia gestos e coisas se queimavam à sua passagem. Dois passos. Alguma coisa pesou na minha mochila e depois deixou de pesar. Não me voltei para ver o que era nem que fim levara. Olhava para a ponta dos meus pés. Um, dois, um, dois, direita, esquerda, firme, não pare, não olhe para os lados, não olhe para trás, não olhe, não olhe, não olhe!

            Esbarrei no corpo de Cíntia, que ia na minha frente, amparando Márcia. O que fora mesmo que lhe acontecera? Senti os cabelos da minha nuca erguerem-se. Não, melhor não lembrar. Todos haviam parado. Todo mundo olhava para cima.

            Eu não queria olhar, Deus eu não queria ver!

            Ergui os olhos.

            Em meio ao silêncio em que estávamos mergulhados, podíamos ouvir o ruído dos galhos se vergando, estalando, estremecendo. Alguma coisa estava andando por cima da teia, no alto das árvores, alguma coisa pesada o suficiente para que os troncos oscilassem, ameaçando quebrar.

            Alguma criatura grande.

            A Sombra passou por cima de nós, alguns metros para a esquerda. A fluorescência branca tornou-se um opaco cinza e alguns pontos da teia afundavam em grandes bolsas e depois voltavam a se esticar como uma cama de borracha. Eu tremia. A floresta inteira estalava como uma escada velha quando um tio muito velho e muito gordo sobe por ela. Em algum lugar, em algum momento, a teia ia ceder. Ou então, uma árvore ia se quebrar.

            A sombra sobre nós, movia-se com lentidão. Parecia arrastar atrás de si uma bolsa enorme. O chiado daquilo escarnecia do silêncio com seu suave rumor. Foi se indo, andando, arrastando-se, distanciando-se lentamente.

            – Mexam-se – sussurrou Faiald e eu pulei como se ele tivesse gritado. – Andem, mexam-se!

            O seguimos ofegando de pavor. Bulbo, na retaguarda, adaga na mão, como se aquela lâmina minúscula pudesse fazer frente ao terror que se arrastava por cima da teia, fazendo a floresta gemer à sua passagem, olhava constantemente sobre o ombro. Ainda havia teias sobre nós, mas nos desviáramos e elas agora estavam vazias. Lá atrás, as árvores continuavam a rachar enquanto sustentavam a Sombra.

            Um, dois, um, dois, mais depressa, mais depressa, eu pensava. Tinha voltado para a ponta de minhas botas. Um, dois, um, dois, um, dois...

            Um...

            Paramos todos de uma só vez, como uma mesma criatura. Paramos em silêncio. Ouvindo.

            Dois...

            Uma árvore, lá adiante, estalou. Depois outra e mais outra, secas, breves e começaram a desmoronar como um jogo gigantesco de dominós, partindo-se como gravetos.

            Elas escolheram mal a trilha! Ah, meu Deus, elas escolheram mal a trilha, eu pensei vendo ao longe algumas árvores desmancharem-se como sonho, vergando ao peso da Sombra que arrastava aquele saco, o tio velho e gordo e sua imensa barriga rolando escada abaixo, gritando e vociferando!

            – CORRAM!– gritou Faiald nos mostrando uma única trilha mais visível na mata. – Corram e não olhem para trás!

            Corremos. Sim, senhor, como nós corremos! Arrastávamos Márcia, rasgávamos os mantos que se enredavam nos galhos, corremos até que o fogo invadiu as nossas entranhas e as pernas transformaram-se em câimbras puras. E aí corremos mais um pouco.

            Até que, finalmente, encontramos diante de nós uma daquelas muralhas de roseiras. Foi preciso muita coragem, mas terminei olhando para cima.

            A mata alta se erguia como a torre de uma catedral, enfeitada com distantes pedaços de cetim azul celeste.

            A Colônia ficara para trás."

sábado, 15 de dezembro de 2012

Dark Fantasy: O substituto

Eu não gosto de repetir textos, mas é que a decoração natalina do shopping de Novo Hamburgo me remeteu diretamente ao conto... então, para quem não leu (ou quiser matar as saudades do senhor Biglon) aqui está ele.



Era sempre assim: todos os dias, antes de abrir as portas do shopping, Rosana sempre passava todos os detalhes das promoções em revista. E todos os dias, pouco depois de abrir as portas do shopping, sempre havia alguém que vinha com algum detalhe que escapara de sua vista atenta. Às vezes eram coisas mais sérias – como o dia em que um cartaz prometia um desconto de 100% em todas as iguarias da área de alimentação – e outras era um mero detalhe sem nenhuma importância. Quando o assunto era importante, Rosana saltava da sua cadeira com o celular já chamando algum número memorizado, enquanto ela caminhava apressadamente rumo ao problema, sorria profissionalmente para o reclamante e se impacientava com a demora do outro lado da linha.

Mas quando o assunto era um autentica bobagem, normalmente, tudo o que ela fazia era sorrir e prometer:

–Verei isso em seguida, senhor.

O “senhor” no caso presente, franziu de leve as sobrancelhas ruivas e espessas, piscou os imensos olhos azuis, deixou cair um pouco da luminosidade do sorriso amável.

–Imediatamente, eu espero. As crianças já estão circulando pelo saguão – observou ele, sério.

Rosana piscou, olhou para a agenda lotada aberta à direita, para as dezenas de notinhas espalhadas diante da tela do computador e para o telefone que começou a soar insistente. Esperava que o homem fosse bom entendedor e compreendesse que estava atolada de serviço mais importante do que trocar o letreiro junto à árvore de Natal onde se lia “Faltam 2 dias para a chegada do Papai Noel”. O correto, afirmava o homem diante de si, seriam “1 dia”.

–O mais rápido possível, – ela disse sorridente e estendeu a mão para o telefone.

O homem não era bom entendedor.

–Eu disse que as crianças, minha senhora, já estão circulando pelo saguão do shopping. Algumas delas já viram o letreiro errado. Há um menino que vem aqui todos os dias pela manhã para ver quantos dias faltam para a chegada do Bom Velhinho. Eu lhe asseguro que ele ficou estupefato ao verificar que hoje e ontem se embaralharam de uma maneira incrível em sua cabecinha mimosa. Está pensando se ontem viu mal ou se hoje ainda não nasceu o dia, ou se ele sonhou, ou o que foi que aconteceu.

Debruçou-se, o nariz aquilino e pontudo espetando o ar na direção de Rosana, a voz rouca muito séria, os olhos imensos com uma expressão quase assustadora.

–O garoto, minha senhora, acredita em Papai Noel.

O telefone parou de tocar. Rosana suspirou e relaxou um pouco na cadeira.

–O garoto é seu neto?

O homem endireitou-se e sorriu amistosamente outra vez. Alegremente. Como um glutão diante do bolo predileto.

–Oh, não! Infelizmente não! Eu não tenho netos. Infelizmente!

Ele parou de falar, olhou de novo para ela.

–E então, vai ver o cartaz agora?

Rosana suspirou de novo, levantou-se de um salto. O cliente sempre tem razão, disse-lhe a vozinha do pai lá no fundo da memória.

–Certo. O cartaz. Estou indo lá ver isso. Bom dia.

–Muito bem. Eu me alegro. Adoro ver o ar aflito das crianças diante daquele cartaz. Adoro ver como esticam o pescoço para ver se Papai Noel não está escondido nas sombras da casinha que vocês tão gentilmente construíram para ele se bem que, se me permite a crítica, o seu Bom Velhinho ia rolar de rir se visse o cenário.

O telefone tilintou de novo, Rosana sentou-se bem mais séria do que antes e atendeu-o de imediato.

–Alô? Quem? O Germano da “Personagens de Festa”? Ah, oi Germano. Sim, só um momento, estou concluindo a reclamação de um cliente. Aguarde na linha, sim?

Voltou-se para o ruivo magro de olhos e orelhas saltadas um bocado aborrecida. A decoração de Natal do ano era obra de sua irmã e a última coisa que ela ia querer, naquele momento, era que alguém fizesse uma leitura pós-moderna de uma árvore de Natal tradicional.

–O senhor tem alguma sugestão a fazer para melhorar nossa decoração natalina?

–Bem, não exatamente, – continuou o outro no mesmo tom de voz, como se o telefone, a linha e a pessoa do outro lado simplesmente não existissem. – Só que se Klaus Nicholas, o Papai Noel de verdade, você sabe, o Pelznickel, se ele aparecesse, não ia conseguir sequer entrar ali. Não ia caber. Um homem daquele tamanho, dois metros e três centímetros de altura, mais a mitra e o báculo, pesando quase cento e oitenta quilos, botas, manto e saco... o banquinho de plástico dourado que vocês chamam de “trono” não ia suportar isso tudo, você sabe...

Rosana pesou o que ele disse, depois agarrou o fone e, muito calma, disse:

–Nosso Papai Noel é um senhor de aproximadamente um metro de setenta, e não creio que passe dos oitenta quilos, sem a roupa com enchimento.

–Seu papai... ah, sim, Augusto Lima, sim, claro. Não se preocupe com ele. Sofreu um acidente ontem à noite e morreu há coisa de duas horas.

A moça empalideceu com violência. Aquilo já tinha passado dos limites.

–Alô, Germano? Olha, estou com um pequeno probleminha aqui, eu ligo mais tarde... em seguida, sim... urgente? O que?

Olhou para o telefone apertando os lábios com força.

–O quê?!

Ouviu em silêncio durante algum tempo. Depois, olhou para o homem que continuava impávido diante dela.

–Sim, estou aqui. Estou ouvindo, sim. Você mandou um substituto para o Papai Noel. Sei, Alto, ruivo, olhos grandes, nariz proeminente. Sim, sei quem é. Acho que está aqui na minha frente.

Pôs a mão sobre o fone e olhou para o homem diante de si.

–Como é seu nome, pois não?

–Pois não: Biglon.

–Sr. Biglon, ahn... posso ver a sua identificação e a carta de apresentação, por favor?

O homem puxou uma carteira grande de couro, de onde tirou uma carta amassada e uma velha carteira de identidade. Rosana observou os dois documentos, sorriu gélida e tornou a falar no telefone:

–Germano? Olha, não precisa se preocupar. Você não vai acreditar, mas o homem está aqui, na minha frente. É. Ta bom. A gente se fala outra hora.

Desligou com um cumprimento seco e fitou o ruivo diante de si, batendo o documento de leve no polegar. Não gostava dele. Não, não gostava nada. Mas, enfim, a carta de recomendação era autêntica e negócios eram negócios. Augusto Lima, o Papai Noel oficial do shopping, sofrera um acidente e morrera. O sr. Biglon era seu substituto, enviado pela mesma empresa que todos os anos chamava o sr. Lima. Rosana não tinha que gostar de Biglon. Biglon tinha de dar conta do recado e isso era tudo.

–Muito bem. Vamos experimentar a roupa...

–Oh, não, não se incomode. Eu tenho meu próprio figurino. Garanto-lhe que ficará satisfeita com o resultado. Por favor, não se incomode.

Sorriu. Uma luz dourada pareceu brotar de seu olhar doce, o ar perfumou-se com o cheiro de amoras silvestres. Encantador. Até Rosana sorriu de volta.

–Abrimos às dez. O senhor deverá estar aqui, no máximo, nove e meia.

–Assim será.

Acenou de leve, virou-se de costas e por um instante Rosana acreditou que seria possível. Então o homem, como se tivesse lembrado de algo no último instante, voltou-se outra vez e com a voz dura, o sorriso congelado, murmurou:

–Quero aquele cartaz trocado até daqui a cinco minutos.

Voltou-se de novo e saiu do escritório. Rosana ficou olhando a porta com um susto. De algum lugar viera um ar glacial que a gelara por inteiro. Ficou olhando o próprio hálito transformar-se em uma nuvenzinha de vapor um momento antes de estremecer.



A manhã seguinte amanheceu como se fosse uma ressaca. A cabeça lhe doía, as articulações pareciam desencaixadas e na boca pairava aquele inefável gosto de cabo de guarda-chuva. Enfim, parecia que o corpo pertencia a outra pessoa e talvez Rosana o tivesse cedido de bom grado. Na falta de outra opção, obrigou-se a levantar-se e tomar um banho frio. No meio da ducha, o telefone tocou. Era a mãe, reclamando da artrite e do pesadelo que tivera com as filhas. A moça a ouviu com a paciência curta e tratou de tornar a conversa igualmente curta mas ainda assim atrasou-se e quando chegou o shopping já estava de portas abertas, luzes acesas, clientes circulando e o jingle de Natal repetindo-se ad infinitum pelos corredores. Jorge, o secretário, recebeu-a no escritório da administração com um ar atento e preocupado e um bolo de papéizinhos na mão.

–Ah, que bom que você chegou! A bomba da água do ar condicionado quebrou de novo. Já chamei o Roger, e ele já está trabalhando, mas quer falar com você assim que puder. Parece que vamos ter mesmo de trocar a peça...

–Você chamou o Roger e ele já apareceu? Cruzes, hoje chove!

–Seu pai ligou e lembrou do jantar de amanhã a noite...

–Tá.

–A Lurdinha passou aqui e queria um vale, então eu emprestei cem reais para ela.

Rosana olhou o secretário com ar descrente.

–Cem reais? Tá louco, Jorge, quando é que você pensa que vai ver a cor do seu dinheiro de volta?

Ele deu de ombros, um pouco corado.

–Ela disse que era um presente para você...

–Nem que fosse para a Madre Tereza de Calcutá. Você sabe muito bem que ela vai terminar gastando tudo no bingo. O nosso Papai Noel já chegou?

Por um instante mínimo, brevíssimo, o suspiro de um anjo, Rosana alimentou a esperança de que o tal sr. Biglon não aparecera, que ela ia poder chamar outro sujeito. Mas Jorge sorriu animado:

–Oh, sim! Sentou-se pontualmente às 10:00 na cadeira do Papai Noel e está “atendendo” desde então. Já faz uma hora e ele nem pediu para ir ao banheiro.

Rosana respirou angustiada. Augusto Lima sofria de incontinência urinária. Saia do seu posto de quinze em quinze minutos no máximo, e corria para o banheiro dos cavalheiros. Às vezes os meninos o seguiam só para conferir que Papai Noel usava o mictório como todo mundo.

–E as crianças? Estão gostando ou temos muito choramingo?

–Elas o adoram! – riu Jorge como se fosse um dos pequenos clientes do velho. – Puxam a barba, riem, cochicham coisas em seu ouvido. Quando ele sentou-se havia apenas dois para fazerem seus pedido. Vinte minutos depois, havia uma fila até a metade do café.

Bem, tudo parecia sob controle. Nada com que se preocupar, além das preocupações corriqueiras. Ela abriu a agenda e consultou os compromissos.

–Claro que... o sr. Biglon fez algumas exigências, – titubeou Jorge.

Rosana levantou os olhos bem devagar.

–Quais?

–Pediu uma garrafa de água.

Ela balançou a cabeça.

–É justo. O que mais?

–Bom... ele... pediu que desligássemos o alto-falante da casinha do Papai Noel. Disse o que o jingle era de muito mau gosto.

Rosana empurrou-se contra o assento da poltrona.

–E...?

–Bom, Rosana, ele fez o pedido de um jeito tão... tão...

–Contundente?

–É... talvez. Em todo o caso, argumentou tão bem, que eu terminei concordando.

–Então a casinha do Papai Noel está sem o jingle que foi escrito para tocar na casinha do Papai Noel e que nos custou os olhos da cara.

–É...

Ela mordeu o lábio, pensativa.

–Certo, vejo isso em seguida.

–Tem mais uma coisa.

Rosana cruzou as mãos sobre a mesa e esperou. Jorge olhou ao redor, confuso.

–Ele não gosta da decoração, você sabe. Disse que não combina com o seu figurino. “Meu traje”, foi o que ele disse. Então ele... ele... eu não sei bem como explicar, mas ele mudou a decoração da casinha.

Rosana concordou com a cabeça, bem de leve. Uma ponta de dor de cabeça latejava discretamente sobre a têmpora.

–Muito bem. Vamos ver isso imediatamente.

A fila de crianças realmente chegava até a metade do café. Alguns dos pequenos esticavam o pescoço na tentativa de ver o que acontecia lá na frente, e por quê a fila não andava mais depressa, mas nenhum deles fazia qualquer tipo de escândalo. O que era muito bom, sem dúvida alguma. Rosana aproximou-se da árvore de Natal, deu a volta no cercadinho cheio de duendes de fibra e isopor e já de longe percebeu a casinha do Papai Noel. De fato, havia alguma coisa diferente. Alguma coisa que ela não sabia dizer o que era. Era a decoração que a irmã fizera, sem dúvida. Nenhuma panela, copo ou coisa alguma havia sido modificado. Mas ao mesmo tempo tudo estava fora do lugar. Ela olhou para o cenário e piscou.

A luz! O sr. Biglon havia mexido na luz! Devia ter apagado umas quantas lâmpadas, porque a casinha, antes alegre, iluminada e quase tão ensolarada quando a praça lá fora, que ardia sob um sol de quase trinta e cinco graus, agora estava cheia de sombras inesperadas, invernais. O candeeiro sobre a mesa parecia exalar a luz de um candeeiro de verdade, o cheiro da querosene impregnando o ambiente. O tinteiro destelhava lampejos de chama e cristal, como se dentro dele houvesse tinta de verdade. A boca do fogão, mais atrás, tremulava em laranja e dourado, como se ali dentro alguém de fato tivesse acendido o fogo. A parca iluminação, entretanto, acentuava esplendidamente os tons de cobre das panelas penduradas sobre o chapa do fogão e a chaleira, também de cobre, fumegava de verdade. As teias de aranha pareciam reais, velhas e empoeiradas, e a própria poeira sobre o console da cristaleira do fundo do cenário, esbranquiçada e cintilante, tinha um ar de coisa verdadeira. A criança no colo de Biglon olhava para ele extasida.

Quando Rosana bateu os olhos no traje do homem, o sangue ferveu. Não, aquilo não era roupa de Papai Noel, nem aqui, nem na China! De baixo para cima: chinelos de lã xadrez velhos e felpudos; meias de listras brancas e vermelhas; calça de um tecido de lã marrom, até a metade da canela, segura por um suspensório de couro ricamente trabalhado; camisa de flanela branca, alva de um jeito como ela jamais vira, com botões de madrepérola e dourado; um cachecol vermelho descansando sobre os ombros; o cavanhaque e o bigode ruivo, caprichosamente penteados e terminados em um bico, os cabelos (ruivos) escovados para trás e isso era tudo. Nada de roupa vermelha, barba branca e longa, touca, saco de brinquedos, botas, barriga, nada disso. Era apenas o velho Sr. Biglon, vestido com o que provavelmente o sr. Biglon usava em sua casa durante o inverno, sentado em uma cadeira de madeira (que, Rosana tinha certeza, ele mesmo havia trazido de casa) com uma menina no colo, ambos conversando animadamente, como velhos amigos. Junto ao cordão vermelho que separava a casinha do restante, uma mulher com os olhos úmidos e um sorriso imenso, não cansava de fotografar a cena. Rosana viu que havia algo muito correto e algo muito errado naquilo tudo, e não era a roupa ou a iluminação da casinha. Era algo muito, muito diferente.

–Com licença, senhora, – ela interrompeu o mais amavelmente que pode. – É sua filha?

A mulher piscou, secou uma lágrima.

–Sou sim. A senhora é do shopping? Ah, a senhora não imagina o que significa isso! Não sabe, não imagina! Não tem nem idéia!

Rosana trocou um olhar com Jorge.

–Estamos fazendo uma pequena pesquisa... gostaríamos de saber o que a senhora achou do nosso Papai Noel... mas parece que a senhora gostou...

–Se eu gostei? Se eu gostei? Meu Deus! Não tenho palavras... não, não posso! Sinto muito!

Soluçou, as lágrimas correndo pela face. Rosana olhou ao redor, nervosa. As outras mães, na fila, olhavam para a mulher com apreensão.

–Eu não entendo... só queríamos saber o que achou do sr. Biglon...

A mulher atirou-se nos braços de Rosana, soluçando. A gerente do shopping sorriu amarelo para as demais. Uma loura abraçou protetoramente o filho e afastou-se. No mesmo instante, o menino começou a berrar como se alguém estivesse arrancando seu couro cabeludo.

–O seu Papai Noel é tudo... tudo de bom! É um pouco incomum, sabe, sem a barba branca e tudo o mais – murmurou a mulher quando finalmente conseguiu falar. – A casinha é meio sombria, parece tão suja... mas minha filha... minha filhinha... ela está conversando com ele, tão animada! Tão animada!

O homem tinha jeito com crianças, pensou Rosana cada vez mais de mau humor. Ele realmente tinha jeito com crianças.

–Ela disse... ela chegou aqui e quando ouviu a musiquinha, disse... “mamãe, esta é a música que a neve faz quando cai?”. Já pensou? Esta é a música que a neve faz quando cai! Meu Deus, que lindo! E foi correndo falar com o Papai Noel.

–A senhora gostaria de ver um médico? Está tão nervosa... – argumentou Jorge, gentilmente. A mulher olhou para ele como se visse uma assombração.

–Vocês não entendem... como poderiam entender? Fazem oito meses que Anette não diz uma palavra! Oito meses, desde que o pai dela foi enterrado!

Sorriu, encantada.

–E agora, olhem só, olhem para ela! Que tagarela que ela é! Que tagarela!

Rosana afastou-se da mulher devagar. Havia uma música no ar, de fato, mas a dor de cabeça começava a transformar-se em uma enxaqueca das graves e ela não conseguia prestar a atenção em mais nada. Viu quando a menina beijou a bochecha de Biglon e saltou de seu colo com um sorriso iluminado, correndo para a mãe com alegria. A mulher a pegou nos braços e encheu de beijos.

–E então, Neti, o que foi que você pediu? – soluçou. A menina, muito séria e preocupada, passou a mãozinha sobre o rosto dela.

–Você está chorando, mamãe! – protestou.

–Não é nada, meu bem. O que você pediu?

A garotinha fez cara de mistério.

–Ah, não posso contar. Senão, o Papai Noel disse que não acontece.

–Mas como a mamãe vai poder comprar o presente para dar para o Papai Noel dar para você? – protestou a mulher carinhosamente.

–Ah, isso? Isso eu posso dizer: eu pedi para o Papai Noel uma boneca fada.

–Ah, meu anjo! Isso mesmo, isso mesmo! Vamos, lá, correndo, comprar!

As duas afastaram-se alegremente, cheias de espírito natalino. Rosana olhou para a casinha e o sr. Biglon acenou alegremente para ela. Então um menino entrou no campo de visão da moça, subiu no colo do homem e puxou-a a barba com força. Ele gemeu e olhou para o menino com uma expressão carrancuda. Os dedos do homem, dedos longos, fortes, nodosos, de unhas muito longas, bateram na mesa com impaciência e desagrado. O menino encolheu-se e murmurou desculpas.

Era o bastante. Rosana virou-se, tateou o braço de Jorge e murmurou:

–Me leva para o escritório e chama o Dr. Rubens que eu vou precisar.



Três dias depois, a segunda-feira raiou promissora. Dezembro inaugurou-se com uma manhã quente e céu de brigadeiro. Rosana conseguiu levantar-se no horário, fazer tudo com calma e sentar-se em sua cadeira antes das nove da manhã. Pediu um café preto e forte a Jorge, consultou a agenda quase com um sorriso nos lábios: de todos os problemas pendentes, os únicos que ainda não estavam bem solucionados era uma discussão em torno da publicidade ousada de uma loja de roupas íntimas e um vaso entupido no closet destinado aos deficientes físicos. De resto, até a bomba d’água do ar condicionado tinha sido substituída e agora funcionava perfeitamente. Era bom demais para ser verdade, por isso ela quase não se espantou quando Jorge bateu na porta discretamente e espiou com um ar que prenunciava chuvas e trovoadas.

–Rosana... hum... tem um sujeito aqui querendo falar com você... ele é... hum...

Virou-se, conversou com alguém.

–Desembucha logo, Jorge, – exigiu a empresária batendo com o canto do lápis que utilizava para anotar detalhes do balanço parcial do mês anterior.

–Bom, o detetive Gilberto da polícia civil quer falar com a senhora.

Detetive? Uma bola fria formou-se na boca do estômago da moça. Era óbvio que em pouco menos de meia hora, a bola fria teria se transformado em uma pequena fornalha.

–Pois diga ao policial que entre, Jorge, e aproveita para me trazer o sal de frutas.

Baixou os olhos um momento, guardando os papéis em uma pasta, perguntando-se que tipo de bobagem Lurdinha havia aprontado agora, ou se o problema teria origem naquele cafajeste do seu ex-marido, e seu eterno pedido de revisão na pensão do filho de ambos e aquele papo insuportável de “você dá mais atenção a esse templo do consumo do que à nós!”, que tinha terminado no divórcio há menos de um ano. Era muito cansativo, mas Jonas não se acostumava ao fato de que já não tinham nada que ver um com a vida do outro. Alguém pigarreou e Rosana levantou os olhos.

Se esperava um homenzinho baixo, de cabelos desgrenhados e sobretudo velho e sujo, feito um certo detetive que entretinha as noites de sexta-feira na casa de sua infância, decepcionou-se. O homem diante dela era alto, jovem, cheirando à sabonete e desodorante caros. Tinha enormes olhos negros incrustados em um rosto de ébano, franco e bem humorado.

–Bom dia – disse ele estendendo a mão grande e elegante, que ela apertou com firmeza. – Eu sou o detetive Gilberto e este aqui é o meu assistente, Lucas.

–Oi, – fez um sujeito emergindo de trás do homem e acenando de leve. Parecia alguns anos mais velho do que o superior, mas o certo é que sua careca e os óculos feios contribuíam e muito para essa impressão.

–Puxa, –comentou ela, tentando ser gentil – que prazer ver um policial tão jovem! Sentem-se, por favor. Em que posso ajudá-los?

Jorge entrou trazendo uma bandeja de alumínio onde descansavam três xícaras de cafezinho, o açucareiro, o adoçante, meio copo de água e o envelope de sal de frutas. Rosana não fez cerimônia e serviu-se do último, enquanto os outros dois agradeciam o café.

–Senhora, estamos investigando o desaparecimento de um menino chamado Gino Martinho.

Rosana pensou um pouco e balançou a cabeça.

–Não o conheço.

–Nem eu esperava que a senhora o conhecesse, – declinou Gilberto com delicadeza. – Gino tem sete anos e desapareceu de seu quarto na noite de sábado. Estamos verificando seus últimos contatos, e consta que o menino e seu pai estiveram no shopping no sábado. De acordo com o homem, ambos vieram ao cinema, lancharam na área de alimentação e visitaram várias vitrines para escolher o presente que o Papai Noel traria. Depois foram para casa, e o senhor Martinho, que é separado, colocou o menino na cama. Pela manhã, a criança havia desaparecido. Queremos sua permissão para visitar as lojas onde eles estiveram, conversar com os atendentes, com o pessoal do cinema, das lancherias, essas coisas.

Presente. Papai Noel. Uma campainha buzinou uma advertência na cabeça de Rosana e ela estremeceu. Lucas, o assistente do detetive, achou que era por causa do sal de frutas e do ar condicionado. A mania das pessoas por ar condicionado era uma coisa que ele não entendia direito. Era insuportável. Muito frio. Ou muito quente. Mas, normalmente, muito frio. Horrível!

–Perfeitamente. O senhor tem carta branca da gerência do shopping para interrogar quem quiser. Vai querer uma sala específica para isso?

O detetive sorriu outra vez, um pouco contrariado. Que mania que as pessoas tinham de somar “perguntas” e “polícia” e obter “interrogatório” e “ditadura”.

–Senhora, nós não vamos interrogar ninguém. Só queremos conversar com algumas pessoas em seu próprio local de trabalho. Pode, por favor avisar que estaremos passando?

–Sim, claro! É só dar uma lista das lojas que pretendem visitar para o meu assistente, que ele já vai ligar para os gerentes dos respectivos estabelecimentos e avisar da sua... aham... bem, como vamos dizer? Visita?

Gilberto aquiesceu.

–Visita, está correto.

Rosana ficou olhando para ele com um sorriso gelado, enquanto chamava Jorge. Passou as ordens para o rapaz e arrematou, suavemente, enquanto os dois policiais seguiam o rapaz:

–Suponho que podemos contar com a sua discrição. Não é muito agradável para os clientes do shopping imaginar que a polícia anda por aí fazendo perguntas a respeito da vida delas, nem que seja por causa de sua própria segurança. O senhor entenderá: muita gente acha isso uma intromissão em sua intimidade.

O detetive parou junto da porta, voltando-se para ela e dirigindo-lhe outro sorriso iluminado. O pequeno grupo se deteve.

–Seremos discretos, pode deixar. Para dizer a verdade, eu esperava uma resistência bem maior por parte da gerência.

Presentes. Natal. Papai Noel. Rosana achou que aquela dor de cabeça estava querendo aparecer de novo. A azia já se instalara.

–O que é isso, delegado! – ela sorriu outra vez. – Eu não gostaria de ver o nome do shopping envolvido em uma investigação, por isso, seria bom se o senhor descartasse o quanto antes a idéia de que o seqüestrador do menino tenha circulado por nossos corredores. A idéia de que seja alguém que trabalha aqui, então, é simplesmente impensável!

–Detetive, – corrigiu Gilberto balançando a cabeça. – E essa é a atitude mais inteligente que já vi neste caso, desde que começamos a trabalhar nele, ontem à noite. Até logo.

–Até sempre, detetive. Se pudermos ajudar em mais alguma coisa não hesite em me procurar – ofereceu ela, desejando que a rasgação de seda terminasse de uma vez.

–Na verdade, – comentou o ajudante do policial – tem uma coisa que a senhora poderia fazer, na minha opinião.

Todo mundo olhou para o homenzinho que parecia imensamente satisfeito por poder intrometer a sua colher na conversa. Rosana, particularmente, já nem lembrava o nome do sujeito.

–E o que seria?

–Ah, minha senhora, a temperatura do saguão! Pelo amor de Deus, estamos quase no verão, mas assim já é demais! – reclamou o homem aborrecido. – Faz um frio tamanho no saguão, um frio tamanho, que se continuar assim termina nevando de verdade sobre a árvore de Natal.

–Lucas! – ralhou o detetive entredentes.

–Eu só estava tentando ajudar... – balbuciou o outro, enrubescendo até a careca.

Um estremecimento mínimo percorreu Rosana e ela balançou a cabeça.

–Pode deixar, senhor, pode deixar. Em seguida eu vou dar uma volta no shopping e verificar se está tudo funcionando direitinho. Verificarei pessoalmente a temperatura do ar condicionado.

Quando a porta se fechou ela esperou alguns minutos e então ligou para o assistente.

–Estou descendo para ver se está tudo certo, Jorge. Quando você terminar de falar com as lojas, encontre-me junto da árvore de Natal.

Levantou-se, consultou o relógio: passava um pouco das nove e meia.

Já ia saindo, quando algo a fez voltar, abrir o pequeno armário à direita da sua mesa e tirar de lá um casaco pesado, que usava só no inverno, e que sempre ficava no escritório para o caso de alguma emergência.

Suspeitava fortemente que aquela era uma delas.



Na decida da escada de serviço, Rosana cruzou com Alonso, o da livraria. O homem usava um bigode enorme, grisalho, tinhas sobrancelhas largas e grandes. Era alto, magro, e as bochechas chupadas, como se sempre estivesse de mau humor, mas era só aparência. Mal viu Rosana, abriu um sorriso bem humorado. Estava sempre atrasado com as taxas de manutenção e limpeza do shopping mas nunca economizava na alegria.

–E então? Teremos um Natal branco, como se fôssemos Londres ou Paris?

Rosana parou no meio do caminho, pensando que o tema da decoração tinha sido estipulado em vermelho e verde, para aquele ano. Nada de branco e prata. Já tinham tido branco e prata há dois anos, será que ele não lembrava?

–O senhor não esteve na reunião sobre a decoração natalina? – perguntou. O sorriso do outro transformou-se em uma careta surpresa.

–Decoração natalina? O que a decoração natalina tem a ver com isso?

–Não está falando da decoração natalina?

–Não. Estou falando da temperatura do saguão – retrucou ele. O sorriso voltou, um pouco forçado. – Eu sei que faz calor, mas isto já é um exagero. Vai afastar os clientes.

Riu, alegre de novo.

–Ou ajudar nas vendas do estoque de inverno da malharia do segundo andar! Eles devem ter ficado com um monte de produtos encalhados neste inverno. Não tivemos inverno de verdade, a senhora sabe, efeito estufa e essas coisas. Meu sobrinho é ambientalista, dá aulas sobre isso. É esse o seu marketing? Se for, me avise. Vou trazer a máquina de café de volta para a livraria e substituir a de sucos!

O ar condicionado. Sim. Rosana estremeceu.

–Vou verificar isso – resmungou – antes de descer.

Deu meia volta e apressou-se a subir.

O último andar do edifício era um espaço amplo, quente e abafado, onde a luz do sol infiltrava-se muito clara pelas aberturas da cumeeira do telhado de amianto. O espaço era usado como estacionamento e o ar condicionado ficava no canto mais afastado e sombrio. Era um trambolho velho e ultrapassado, legado que a gerência anterior tivera a impertinência de definir como “pequeno probleminha térmico”. No inverno, não dava conta de aquecer, no verão, não dava conta de resfriar. Vivia dando problemas e a liquidez da atual contabilidade ainda não lhe permitia investir em um aparelho novo. Mas Rosana vinha fazendo grandes progressos na área do empréstimo bancário. Esperava que logo, logo, o gerente da agência do próprio shopping percebesse que trocar o monstro quimérico atrás da grade amarela e da placa “Não passe. Perigo de morte” era imprescindível para o futuro do estabelecimento.

O aparelho enorme, empoeirado e velho, roncava a todo volume, ecoando pelo estacionamento vazio. Quando encontrava-se à poucos passos de lá a coisa emitiu um apito e o que quer que roncasse dentro dela parou de repente de fazer barulho. O aparelho sacudiu-se como um monstruoso cachorro molhado e silenciou. Rosana revirou os olhos e puxou o celular da cintura, mas não chegou a abri-lo. Ouviu alguém praguejando em voz alta. A porta da grande de segurança estava aberta – o que contrariava as normas – e ela entrou no estreito corredor que circundava a máquina, intrigada. Encontrou Adams, o zelador das garagens, empunhando uma chave inglesa e pronto para desferir um golpe na velharia recalcitrante.

–Não se atreva a fazer isso, se não quiser que o conserto dessa coisa saia do seu pagamento! – explodiu Rosana saltando para agarrar a ferramenta.

O homem virou-se assustado e tossiu descontroladamente.

–Dona Rosana! – fez ele, quando conseguiu recuperar o fôlego.

–Eu mesma. Posso saber o que pensa que está fazendo? – gritou ela com as mãos na cintura.

–Estava tentando consertar...

–Batendo nesse troço com uma chave inglesa? Por acaso ninguém lhe ensinou como usa-la? E por falar nisso, que história é essa de estar aqui dentro, mexendo no ar condicionado? Entende do assunto, por acaso?

–Eu queria arrumar... o técnico esteve aqui não faz nem uma semana! – ele gaguejou humildemente. – Foi ele que me disse que se eu precisasse abrir o registro da saída de água, talvez tivesse de dar umas batidinhas com a chave...

–O senhor tem um minuto para sair daqui. Um minuto! E me deixe a chave da grade.

–Dona Rosana, não fique zangada, eu lhe peço. Olha, não vá me deixar na mão, hein? Eu não tive culpa! Nem mesmo encostei nessa coisa! Quando cheguei ele já estava regulado para esquentar! Foi o termostato! Deve estar quebrado! Eu não fiz nada! Nada!

A moça ficou em silêncio, mas estendeu a mão para ele. A súplica do outro caiu para um resmungo tristonho quando separou a chave que ela pedira do molho e depositou-a na mão delicada mas firme.

–Se o técnico verificar qualquer avaria ocasionada por alguma violência, vamos conversar muito seriamente, entendeu? – ela comentou quando ele passou por ela arrastando os pés. O rosto do homem iluminou-se.

–Obrigado, dona Rosana! A senhora é uma santa!

Rosana fitou-o em dúvida e ficou olhando ele sair do recinto gradeado e fechar a porta. Os passos se perderam rapidamente na direção do controle do estacionamento e depois tudo ficou muito, muito quieto. Era um silêncio morto e quente, como se alguém a tivesse empurrado para dentro de um forno aceso e fechado a porta.

Pouco dada à impressões, a moça voltou sua atenção ao maquinário estragado. Havia vários relógios de pressão que não significavam nada para ela. Era como um cacho de olhos brancos e mortos de alguma criatura sombria e pesada, que se acoitava no calor sombrio da garagem superior. Bateu sobre um deles, cujo ponteiro, murcho apontava para o zero e em outro, imóvel, que assinalava “80”. Gostaria de saber “80” o quê, pensou ela voltando sua atenção para o termostato, o único que ela reconhecia e do qual conseguia extrair alguma informação. Mesmo que fosse aquela sandice.

O marcador indicava menos cinco.

Franziu o cenho, bateu sobre o mostrador, que não se moveu.

Cinco graus negativos?

Não era de admirar que a máquina pifara. Se o termostado marcava uma temperatura dessas, o mecanismo ajustava-se automaticamente para aquecer. E com o calor que fazia ali em cima, o mínimo que se podia esperar, é que alguma coisa queimasse ou derretesse dentro do aparelho.

Devia estar muito quente, lá em baixo. Ou, pelo menos, todo mundo deveria de estar reclamando de calor, não de frio. O melhor a fazer era chamar Roger e pedir que ele viesse o mais depressa possível.

–Droga! – resmungou ela, puxando o celular.

Não havia sinal.

Verificou a bateria – completa – , sacudiu o aparelho, e nada.

Súbito, alguma coisa dentro do ar condicionado estalou como um tiro e um jato de vapor escaldante jorrou bem à frente dela com um apito inesperado, seguido de um chiado alto. Rosana deu um salto, o coração querendo lhe sair pela boca. O celular voou de suas mãos e foi parar embaixo do monstrengo de lata e filtros velhos.

Irritada, chutou a coisa de metal. Oh, sim, o dia prometia ser infernal!



Toda aquela confusão com o ar condicionado havia lhe custado bem mais tempo do que esperava. Quando a gerente chegou ao térreo do shopping e verificou o relógio, faltavam seis minutos para as portas do estabelecimento abrir. Seis minutos não era nada. Rosana passou pela chefe dos seguranças e avisou que deviam retardar a abertura das portas até uma segunda ordem. A mulher a fitou curiosa e Rosana nem sequer se deu ao trabalho de explicar alguma coisa. Caminhou apressada para a área do saguão sentindo, à cada passo, como a temperatura baixava de maneira espantosa e, sem diminuir o passo, vestiu o casaco por cima da roupa suja pela poeira do estacionamento. Continuou andando, zangada demais para sentir frio, apressada demais para prestar atenção nos atendentes dentro das lojas, que espiavam de olhos arregalados, e distraída demais com a dúvida de se Jorge a estava ou não diante da árvore de Natal, como haviam combinado. Esperava que ele estivesse com o telefone celular à mão, para chamar Roger imediatamente. Depois teria de dizer-lhe que pedisse à Adams que recuperasse seu próprio celular de debaixo do ar condicionado, se é que o delicado aparelho que a mãe lhe dera há duas semanas ainda estava em condições de funcionamento. “Canta, dança e sapateia”, dissera-lhe a mulher. Ninguém falara nada de impactos e nem de altas temperaturas.

Quando chegou no saguão, parou de repente, confusa.

Por alguns instantes intensos pensou que havia errado de porta e, de alguma maneira que não entendia, atravessado um umbral estranho e maravilhoso que a transportara a algum outro lugar. A pele do rosto contraiu-se debaixo da maquiagem de verão, sob o impacto do frio. Ela sacudiu-se abominavelmente, envolta pela temperatura mais baixa que já sentira. Apertou o casaco em torno de si, esquecendo qualquer resquício de elegância que ainda tivesse sobrevivido e escondeu as mãos sob as axilas, como fazia quando era pequena e morava com o pai e tinha de ir à escola sem agasalho ou luvas. Diante de sua boca entreaberta de espanto, formou-se uma pequena nuvem branca de vapor.

Mas isso era apenas uma parte de tudo.

Percebeu que dentro das lojas, os atendentes encolhidos e próximos uns aos outros, fitavam-na assustados. Havia muita gente refugiada nos restaurantes da área de alimentação, próximos aos balcões de buffet. Rosana supôs que estivessem com as bocas de gás acesas. Na pizzaria de forno à lenha – que nessa época costumava ficar às moscas – uma pequena multidão se aglomerava – entre eles, Jorge, que acenou-lhe aflito. Mas nem um grito se ouviu, nenhum som. O silêncio ali em baixo era ainda maior do que o do estacionamento, embora tão delicado que parecia que qualquer coisa poderia rompê-lo: o suspiro de uma abelha, o vôo de uma libélula, o cintilar de uma estrela. Olhou para a árvore de Natal. Alguma coisa estava diferente – muito diferente. As luzes pareciam mais vivas, embora menos intensas, tremulando como chamas de velas, quentes, macias, acolhedoras. Ela sabia, de alguma maneira que nem pensava em como explicar, que os enfeites – brinquedos vermelhos – agora eram outros. No lugar dos cavalinhos, trombetas, bonecas, todos de plástico, havia agora cavalinhos de madeira, trombetas de metal dourado que emitiriam uma nota aguda, se sopradas, e bonecas de pano de verdade. E as estrelas, as estrelas de cartolina, lantejoulas e lampadazinhas agora brilhavam como se...

... como se as próprias estrelas do céu estivessem presente!

Outro arrepio violento a sacudiu como um vendaval, e Rosana deu um passo para dentro do saguão, como o intuito de dar a volta na árvore e refugiar-se com os demais na pizzaria, enquanto pensava em quem chamar – os bombeiros, talvez? –, mas então deteve-se outra vez, esticando o pescoço para frente, tentando ver o que acontecia ao pé da árvore. Ali havia um azáfama estranho, que não percebera nos dias anteriores. O movimento lento e repetitivo dos duendes mecânicos tinha sido substituído pelo ir e vir intenso e inconstante de uma série de pequenas sombras. Rosana fixou os olhos, saltitando continuamente na tentativa inútil de aquecer-se, mas ainda assim, não conseguia compreender o que era aquilo. A mirada desviou-se lentamente, incrédula, para a chaminé da casinha do Papai Noel, uma casinha maior do que a que tinha sido construída originalmente, como se o cenário tivesse inflado durante a noite. E da chaminé provocante emergia uma fumaça azul acinzentada que espalhava pelo saguão o cheiro bom de madeira crepitando alegre, pão recém tirado do forno e café com leite bem quente. Rosana seguiu a fumaça em sua ascensão com olhos famintos de calor, seguiu-a até a ponta da árvore que parecia viva, parecia crescer e respirar como ela nunca percebera que as árvores faziam, uma árvore com vontade própria.

E justamente ali, entre a balaustrada do segundo e do terceiro andar, a fumaça se perdia em uma nuvem densa, escura, cor de chumbo, uma nuvem que cresceu, condensou-se, iluminou-se com um relâmpago e começou tranqüilamente à nevar, como se isso fosse possível, como se isso não fosse um verbo impessoal. A neve flutuou como mágica ao redor dos galhos verde-escuros, o verde mais escuro e sombrio que Rosana já vira, mesmo em sonhos, um verde em cuja sombra ocultava-se tudo o que assombra a infância e onde brilhava distante e tímido, tudo o que a ilumina: o monstro do armário, o anjo da guarda, o bicho-papão, a fada madrinha, a mão que bate, o abraço carinhoso. A neve caiu na árvore, enquanto as sombras ao pé dela acoitavam-se em seus galhos mais baixos, condensou-se nos ramos e então diminuiu até quase parar. Em seguida a árvore sacudiu-se para livrar-se do excesso, e depois disso as sombras saíram do pé dela, deram-se as mãos em uma roda e puseram-se a pular e correr, enquanto entoavam o canto de Natal mais belo e mais irritante que alguém já ouvira.

Mesmo em sonhos.



Aquilo era, francamente, demais! Rosana avançou para a casinha do Papai Noel a passos duros, deixando momentaneamente de importar-se com o frio, com os olhares dos funcionários das lojas, com as incômodas alterações da árvore de Natal. Ignorou até mesmo as sombras que cantavam e dançavam sob os galhos mais baixos, embora isso fosse um esforço extra. Seus olhos desviaram-se para elas apenas por um momento e o que viu foi o bastante: olhos arregalados, orelhas pontudas, narizes avermelhados. Talvez alguns chapéus de feltro, mas não tinha certeza. O que a fez desistir dos vultos foi a pele verde acinzentada. Parou diante da frente do cenário e praguejou em voz baixa.

Alguém pusera uma parede ali, e na parede havia uma porta e uma janela igual às janelas que adornavam as outras paredes. Porém, inacreditavelmente, era possível ver através da nova parede. Estava ali, era sólida, parecia perfeitamente sólida, mas ali estava a mesa, a cadeira, o abajur, o fogão (com o fogo tremulando em seu interior), as panelas de cobre, as outras janelas e o homem ruivo das calças curtas e chinelos de lã.

Tudo tem um limite, Rosana pensou. Aproximou-se da porta (de muito longe ouviu uma voz gritar seu nome, como se a chamasse através da estepe árida e gelada que enxergou ao espiar sobre o ombro. Talvez o grito viesse do bosque à esquerda, mas resolveu não dar atenção a nada mais a não ser a porta diante de si, não agora, não mais. O bosque e a estepe haviam soprado o shopping para longe e ela perguntou-se, finalmente, o que é que as crianças viam quando iam até a casa do Papai Noel substituto) e então ergueu a mão e bateu com força e determinação.

–Entre, está aberta, – disse o sr. Biglon.

Ela puxou um pedaço da manga do casaco para baixo, meteu a mão protegida por ela na maçaneta (nem por um momento duvidou que deixaria a pele em sua superfície gelada, caso não se precavesse) e entrou.

O calor da casinha a acolheu com um prazer quase brutal. A moça cambaleou na soleira da porta, enregelada, percebendo afinal o quanto estivera próxima a um fim branco. O Sr. Biglon a encarou com os olhos muito azuis e aborreceu-se:

–Pelo amor de Deus, feche essa porta. Está gelado lá fora!

Rosana obedeceu, com uma certa gratidão. De súbito sentiu como a sombra empoeirada da casa a acolhia com seu calor e silêncio, como se ao fechar a porta o tivesse feito sobre uma terrível algazarra de luz e frio. Respirou fundo apoiando a testa na porta de carvalho antigo, sentindo o cheiro de pinheiros e resina desconhecida. Depois endireitou as costas. Aprumou como pode o casaco e a saia, mas não tirou os sapatos encharcados da neve do curto caminho entre o portãozinho do jardim da casa e a portinha – entre o saguão do shopping e o cenário do Papai Noel. Voltou-se. O sr. Biglom a fitava reclinado na poltrona, observando-a, analisando-a, e fumando aquele cachimbo enorme, que emitia uma fumaça dourada.

Rosana piscou. No momento, parecia procurar as palavras adequadas, mas então viu, à sua esquerda, um mural no qual havia vários recortes do jornal da semana. Aproximou-se, leu as manchetes.

“MÃE E FILHA SOFREM ACIDENTE FATAL NA SAÍDA DO SHOPPING”

“PILOTO ENLOUQUECE AO AFIRMAR TER VISTO MENINO VOANDO AO LADO DE BOING”

“UMA ADOLESCENTE EXIBE, NA INTERNET, FOTOS DO INTERIOR DO VESTIÁRIO DO TIME DE FUTEBOL LOCAL LOGO APÓS A PARTIDA DE SÁBADO”

“MENINA DEVORA TODOS OS PRODUTOS DA PADARIA”

“DESAPARECIMENTO DE MENOR CAUSA APREENSÃO”

“MENINA SUPOSTAMENTE DEVORADA POR CÃES”

Rosana franziu o cenho e cruzou os braços. Tinha recomeçado a tremer.

–O que é isto? O senhor coleciona manchetes bizarras de jornais sensacionalistas? – perguntou num fio de voz.

–Isto são as manchetes que ilustraram os jornais locais da sua cidade no fim de semana. Em que planeta a senhora vive?

Rosana desviou o olhar das notícias. Em particular, desviou o olhar da primeira e da última delas.

–O que significa isso?

Ele suspirou, irritado.

–Muito bem. Vejo que a senhora, ao fim e ao cabo, não entendeu nada e não pôde deixar de vir de improviso. Percebe que está violando o artigo 25 do contrato firmado? A senhora se arrisca a pagar uma multa.

O calor voltava muito rapidamente à Rosana. Ela apoiou-se na mesa e olhou o homem bem de perto.

–Uma multa? Por quê? – indagou, tentando tomar pé no assunto. Finanças parecia um bom começo: eram feitas de números e contratos e eram, portanto, algo sólido.

–Porque quebrou o artigo 25 do contrato que firmou com a “Personagens de Festa”!

Ele puxou um papel de uma gaveta, ajeitou os óculos sobre o nariz e leu:

–“Artigo 25: o empregador deverá informar qualquer visita de inspeção com pelo menos vinte minutos de antecedência. Caso contrário, se verá sujeito à multa estipulada no artigo 32 do Capítulo IV ‘Das Multas’”... etc.etc. Tenho certeza de que leu o contrato na íntegra antes de assinar. Não se faça de desentendida.

Rosana começou a rir. A situação parecia tão ridícula, depois de tão impossível, que não pode impedir as gargalhadas que a faziam dobrar-se diante da mesa.

–A senhora pode não achar tão engraçado quando nosso advogado a procurar, – observou o sr. Biglon guardando sua via do contrato. O acesso de riso redobrou. Mas, como tudo, depois de alguns minutos, o riso desapareceu. De alma lavada, Rosana sentou-se em uma cadeira puxou um velho maço de cigarros esquecido no bolso do casaco desde o inverno anterior e acendeu um para si.

–Não devia fumar, – observou o outro com um ar carrancudo. – Além do mais, estamos atrasados. Onde estão os clientes do shopping?

–Por que não? O senhor também fuma, – observou Rosana apoiando os pés gelados e molhados em um banquinho diante do fogão. – E estamos atrasados, claro. Os clientes devem estar se perguntando por que diabos o shopping não abre. E o shopping não abre, caro senhor, porque os seguranças tem ordem minha de não fazer nada até segunda ordem. Isso para não contar o pessoal que me viu entrar na sua... casa (ou talvez sumir na estepe, quem sabe?) e deve estar se perguntando porque não saio daqui. E, é claro, temos aqueles dois policiais que estão no meu shopping, fazendo perguntas sobre quem viu pela última vez um garotinho que é, no fim das contas, meu cliente. O senhor sabe do que eu estou falando?

–Sei, – respondeu o sr. Biglon tranqüilo.

Rosana o fitou através da fumaça do cigarro. Por que não estava surpresa?

–Por que não estou surpresa?

Ele balançou os ombros. Ela fez uma careta.

–Quer saber? Acho que foi o pai. O pai o matou e agora fica dizendo que alguém veio à noite e levou seu filho. Ou então ele o levou para um lugar retirado e está se fazendo de vítima... por que está fazendo que não com a cabeça?

–Você está enganada. O pai é inocente. Isso não tem nada a ver com o pai, absolutamente nada, – insistiu o sr. Biglon enchendo o cachimbo de novo. Pegou uma longa vareta que expôs ao fogo vivo do fogão, depois levou a chama até o seu cachimbo e tragou. A fumaça dourada espalhou-se de novo.

–Tem a ver com o quê? – perguntou Rosana, quando viu que ele não ia continuar.

–Ora, com o presente de Natal que ele me pediu.

Ela estremeceu. Sim, era isso, o soubera o tempo todo, desde que o jovem detetive lhe comentara sobre o caso. Embora não conhecesse os detalhes, tinha certeza absoluta de que o menino viera até Biglon e selara seu destino com ele.

–Como assim? – ela perguntou. O sr. Biglon pareceu impaciente. Levantou-se passeou pela saleta, voltou a sentar-se. O cachimbo tinha se apagado.

–Vamos ver, senhora: fui contratado como Papai Noel substituto do shopping. Qual é a minha primeira função?

–Perguntar às crianças como se comportaram no ano – reduziu Rosana, brusca.

–Que tolice! Minha primeira função é ouvi-las. Elas vêm até mim e me pedem o que querem de Natal. Eu ouço e lhes digo: “então, é isso mesmo que você quer?” E se elas me dizem que sim, só então eu verifico se merecem o que estão pedindo. A maioria delas merece, e sabe por quê? Porque a maioria é de gente boa. Não são muitos os que afogam gatos na privada porque gostam de vê-los morrer. A maioria o faz, porque quer saber o que acontece. Bem, acontece que o gato morre, como a senhora sabe por experiência própria.

Rosana percebeu que sua mão tremia ao segurar o cigarro. Como, em nome de Deus, Biglon sabia do gato que ela afogara na privada quando era criança?

–Não é maldade, é curiosidade... – ele continuou. – Lógico que depois do segundo gato, já a coisa muda de figura.

–O que isso tem a ver com a desaparição do menino? – ela interrompeu com a voz um pouco acima do volume que pretendia empregar.

–Tudo! O menino pediu de presente de Natal ir viver em outro planeta, – Biglon sorriu e fez um gesto esquisito com as mãos. –Você sabe, etês e tudo o mais, uuuuuhhh. Mas receio que ele terminará se cansando de ser objeto de experiências biológicas, você sabe. Nossos vizinhos cósmicos não tem muito respeito pelo ser humano. Ele é apenas um objeto de estudo, apenas isto, e lamento dizer que não creio que o garoto sobreviva mais de duas semanas nas mãos deles. Os etês são criaturas muito curiosas, mas carecem de piedade. Lógico, não tem ascendência mamífera...

–Está me dizendo que o garoto foi abduzido? Espera que eu diga isso à polícia e que eles acreditem? – interrompeu Rosana.

O sr. Biglon deu de ombros outra vez.

–Estou lhe dizendo a verdade. O que a senhora dirá à polícia é problema seu.

A moça levantou-se e aproximou-se de Biglon outra vez.

–O senhor é louco? – perguntou com seriedade.

–A senhora viu nevar dentro do seu shopping e atravessou uma estepe nevada situada na praça de alimentação. Acha que estou louco? – rebateu ele, glacial.

Rosana não disse nada por um momento. Ele aproveitou:

–Desculpe pela neve e tudo o mais, mas a sua árvore de Natal era uma piada. A música, horrorosa. A casinha, minúscula. E aqueles enfeites de plástico? Uma afronta! Se Klaus Nicholas visse isso, você ia se arrepender de ter nascido! Tive de tomar uma providência!

–Quem é o senhor?

Biglon piscou, depois sorriu.

–Já viu minha carteira de identidade?

–Já ouviu falar em documento falso? Quem é o senhor? O que é o senhor?

–Não lhe direi meu nome, porque isso não corre na sua conta. Mas vou lhe dizer o que eu sou: sou um dos ajudantes do Papai Noel. Um dos verdadeiros ajudantes do verdadeiro Papai Noel.

Rosana endireitou-se mecanicamente, como se tivesse levado uma bofetada.

–Eu tenho o dom de dar às pessoas aquilo que elas querem. Exatamente aquilo que elas querem mas que não se pode adquirir em uma loja. Aquilo que elas desejam mais do que tudo, mas não tem coragem de admitir para si mesmas. Pelo menos os adultos não têm. Os adultos não tem coragem de sonhar, minha senhora, porque temem demais aos seus próprios pesadelos! Então desistem. Mas as crianças não. As crianças ainda ousam sonhar e desejar!

Levantou-se bruscamente e caminhou até o quadro mural e enquanto falava, ia arrancando do painel as notícias e jogando-as sobre a mesa:

–A menina que passou oito meses sem falar uma palavra por causa do sofrimento que a morte do pai lhe causou, pediu-me para reunir sua família para sempre, para que nunca mais sentissem falta um do outro! Realizado no mesmo dia! O garoto que me pediu para voar demorou um pouco mais. No final, não me pediu para ensiná-lo à aterrissar, de modo que imagino que já esteja um tanto arrependido, mas é tarde demais. A garota de quatorze anos queria ser invisível, para poder visitar o vestiário masculino do seu time predileto depois do jogo. Queria ver os jogadores nus. Já era meio crescida, mas a atendi porque fazia quase um século desde que encontrei uma menina de quatorze anos que realmente acreditava em Papai Noel. E também porque foi sábia: pediu para ficar invisível somente enquanto estava dentro do vestiário. Mereceu cada instante de prazer que teve. E foram muitos. A outra, entretanto, foi tola. Comeu o que havia na padaria e morreu de indigestão. Bem feito! O menino que a trouxe aqui, está há umas doze horas-luz de casa, completamente fora do alcance de qualquer um de vocês. Houveram outros, é claro, esses são os que saíram no jornal.

Virou-se para Rosana e sorriu de um modo especial, doce como mel, dourado como o sol. A cozinha ficou cheia das cores do verão.

–E você, Rosana, o que deseja? O que realmente deseja? Pode pedir. Quer que seu filho deixe seu pai e venha viver com você? Quer herdar o dinheiro da sua mãe? Livrar-se da irmã viciada em jogos que está custando todo o salário que você ganha, em dívidas e advogados? Quer ser rainha? Astronauta? Estrela de cinema pornô e levar uma vida muito mais animada do que a que leva agora? O que você quer?

A gerente do shopping olhou para o ele furiosa. Como ele podia saber tudo aquilo sobre ela? Como? Jogou o cigarro no fogo com um gesto brusco.

–E aquela notícia ali? – perguntou apontando com o queixo o último recorte que ainda pendia do mural.

“MENINA SUPOSTAMENTE DEVORADA POR CÃES”

O sr. Biglon pareceu constrangido.

–Bah! – fez ele. – Tolices.

–Estamos jogando o jogo da verdade, sr. Biglon. O senhor acabou de dizer um monte de coisas que são verdadeiras e que me envergonham bastante. E também já me falou de coisas que o orgulham. Agora diga-me algo do qual não se orgulha tanto.

Sentou-se na cadeira de novo, na ponta da cadeira.

–Diga-me, sr. Biglon, o que fez com a menina que foi devorada por cães?

–Você quer saber? – ele vociferou. – Quer mesmo saber? Então bem, eu lhe conto: Klaus Nicholas me despediu porque eu tenho um fraco por crianças, entendeu?

Rosana estremeceu, arrependida por ter perguntado. O rosto de Biglon transformou-se em uma máscara feroz. Os olhos arregalaram-se ainda mais, o azul da íris recortado por um aro externo prateado. As narinas expandiram-se, cheirando o ar. Os cabelos ruivos erigiram-se, a barba hirsuta espetando no ar a ponta afilada. A boca alargou-se, encheu-se de dentes e saliva e a língua de Biglon pendeu longa, pontuda e azulada de sua boca. Parecia um grande cão. Um predador. Rosana ergueu-se e deu um passo para trás agarrando a ferramenta para atiçar o fogo.

–Eu não posso resistir, – uivou a criatura. – Dou-lhes o que me pedem, mas de vez em quando eu pego uma para mim entende? Que droga, não é nada mais do que justo! Lhes dou o que me pedem! Qualquer coisa! É da minha natureza. Então às vezes eu... eu...

Arreganhou os dentes e rosnou de um jeito que Rosana nunca havia visto bicho algum rosnar. Nem mesmo em pesadelos.

–Chega, Biglon! Eu não sei quem você é, nem me interessa! Vou chamar a polícia! – ela ameaçou.

Foi a vez dele rir, mas o som de sua risada era insano, mau. No final de tudo, ladrou como um cão e bateu os dentes afiados uns contra os outros num som medonho.

–Vai usar o quê? Talvez o celular que ficou embaixo do ar-condicionado que ousou me desafiar? O pobre aparelho deu tudo de si hoje pela manhã, mas é claro, eu queria neve, neve de verdade! Foi uma luta e tanto: magia contra máquina! Divertido, não tinha passado por isso ainda. E no final de tudo, eu venci.

Ele avançou para ela sorrindo.

–Eu sempre venço.

Rosana deixou de bancar a heroina: largou o atiçador, deu meia volta a fugiu pela porta. Mergulhou para a luz gelada e branca e o frio a penetrou como mil agulhas. Jamais sentira nada assim. O peito doeu violentamente e ela dobrou-se. Há poucos passos da porta caiu de joelhos. Mas depois levantou-se e correu para o portãozinho e o atravessou na direção da estepe gelada.

Subitamente, estava de volta ao saguão. O frio diminuíra, mas não muito. O peito ainda doía. As pernas não obedeciam. Caiu de joelhos de novo, ofegando, lutando para não perder a consciência. Viu os pés de Biglon ao seu lado dentro do chinelo de lã xadrez. Alguma coisa pingava lá de cima, cristalino e pegajoso. Ela não levantou os olhos. Só soube que, com todo o coração, desejava que ele fosse embora. Ele e sua árvore de Natal, os vultos verde-acinzentados e sua capacidade de realizar desejos.

–Vá embora! Vá embora com suas coisas e nos deixe em paz! É isso que eu quero, é isso que eu desejo! Prefiro a mentira de um presente comprado! Prefiro os enfeites de plástico, o jingle horroroso e a neve de isopor! Você disse que ia realizar o meu pedido de Natal! Pois estou pedindo!

Ouviu um resfolegar aborrecido. Logo, Biglon agachou-se junto dela e murmurou junto ao seu ouvido com um hálito velho e podre, os lábios arreganhados numa careta do mais profundo desprezo:

–É por isso que os adultos perderam o Natal. É por isso que você perdem os enfeites, as árvores de Natal de verdade, cheias de neve verdadeira, é por isso que vocês não escutam mais o canto das fadas, dos duendes e das árvores. Vocês não tem colhões para a magia. Vocês acham que o Espírito Natalino é dar comida aos pobres e chorar diante de um comercial de televisão... Nada é mais poderoso do que o Espírito Natalino! Ele é a renovação em pleno Inverno, ainda que aqui seja Verão! É nascer quando outras coisas morrem, apesar de que outras coisas morrem, porque outras coisas morrem, por cima e às custas das coisas moribundas. É desfazer-se do que passou e renovar-se sem uma lágrima de pena, só gritos de júbilo. Por isso vocês choram, à cada Natal: vocês só tem olhos para o que deixaram para trás; o ano que passou; os dias que morreram, o medo, o monstro, o terror. E, bem feito: é só isso que vocês vêem.

Levantou-se, cuspiu ao lado dela e resmungou:

–Levante-se e pare de chorar. Eu ofereci, você pediu. Fique com a sua árvore de plástico.

Rosana viu os chinelos afastarem-se arrastando-se em direção à casinha, depois ouviu a porta bater com raiva. Quase no mesmo instante o frio começou a arrefecer e um som insistente e repetitivo encheu seus ouvidos. O jingle? Ela olhou para o lado: um boneco de plástico movia-se lentamente. Pura mecânica.

–Rosana! Meu Deus, você está bem?

Ela levantou os olhos e deu com Jorge que esforçava-se por levanta-la. Agarrou-se a ele, trêmula e sussurrou em seu ouvido.

–Biglon! Onde ele está?

Um curto silêncio. Além do ombro de Jorge, os atendentes das lojas formavam um círculo a uma distância respeitosa. Viu que Gilberto e aquele outro policial vinham abrindo caminho entre os demais.

–Não sei! Não posso compreender. A casinha... voltou ao que era... está vazia. Onde ele se meteu? – quis irritar-se Jorge. Só então Rosana teve coragem de voltar-se e contemplar o cenário.

Estava vazio. A casinha encolhera, voltara ao seu tamanho original. Rosana conseguiu levantar-se e observar o cenário com atenção. Logo, estremeceu.

Na parede da esquerda, presa com um percevejo, ainda tremula a notícia sobre a morte de uma menina supostamente devorada por cães.